Tuesday, March 17, 2009

Dia de São Patrício

Meu cachorro estica as patas, suspira, e volta a dormir. Bem lá longe, tocam uns sinos de vento; começa a chover de leve. Eu me levanto e prego dois pregos, contribuição discreta à sinfonia da tarde. Penduro quadros novos na parede – ficam quase bons. Arrumo uma gaveta, que permanece como estava. Faço três excursões ao banheiro, para ver se deixei alguma coisa por ali. Abro a porta da geladeira e esqueço o que fui buscar.

É dia de São Patrício e eu penso em fazer alguma referência às minhas supostas raízes irlandesas. Ou quem sabe contar mais uma vez a história do santo que expulsou as cobras demoníacas da Irlanda. Penso em fazer um post perfeito, com referências curiosas e tiradas espirituosas, mas o caminho é tão longo que me contentaria com um texto razoável. O ordinário e o bonito se separam, muitas vezes, por não mais que um detalhe; mas entre o belo e o perfeito existe um mar de escolhas difíceis. E eu tenho uma preguiça absurda de nadar.

Então é dia de São Patrício, e devo dedicar a ele um brinde pelo estado de espírito em que acordei. Hoje estou capaz de pensar um pensamento por vez, ou de pensar nenhum, se quiser; capaz de não me culpar mais que o necessário, apesar de reconhecer-me fortemente deformado pela adaptação à liberdade de Deus (como escreveu Clarice). Bem capaz, como dizem no sul, apesar de quererem dizer o contrário.

Ah, S. Paddy, te vejo regendo o mundo com tua calma onisciente de bêbado. Imagino-te com uma caneca de cerveja verde na mão e um sorriso complacente, enquanto as pessoas seguem achando que a vida se mede em realizações. Acabo de perceber que vinha tentando escrever, quando, na verdade, deveria ter pego o violão. Se bem que até o violão é barulhento demais para a música que a tarde quer tocar.

Tuesday, November 11, 2008

Eles, os bípedes

Um sujeito no cursinho tentava intimidar os colegas, no intervalo de uma longa bateria de exercícios de economia.

- A questão 7 era fácil demais. Tinha que ser quadrúpede, para errar aquela.

A sentença excluía-me sumariamente do grupo evolutivo a que eu acreditava pertencer. O fato de não ter passado longe da resposta correta me garantiria, no máximo, com alguma benevolência, a condição de trípede. Ofendido, cheguei a formular minha defesa hipotética.

- Você se equivoca quanto ao epíteto, nobre colega – redargüiria eu – Alguns dos melhores seres com que tive a honra e o prazer de conviver eram quadrúpedes.

- Melhores em que aspecto? – instigaria ele.

- Em vários.

- Por exemplo...?

- Por exemplo, no senso de humor – finalizaria eu, triunfante.

Preferi poupar-nos a ambos do pugilato verbal, que poderia tomar rumos surrealistas; e, admito, a vaidade jamais me permitiria confessar a derrota diante da fatídica questão. Mas, quando voltei à sala de aula, percebi que algo se havia quebrado dentro de mim. Deslocado da posição que costumava ocupar em relação ao número de pontos de apoio que mantenho com o solo durante o ato de andar, olhava agora para os bípedes ao meu redor repleto de hostilidade.

Simultaneamente, percebi que com a antipatia vinha uma inusitada sensação de liberdade. Extasiado, começava a entender que, se não fazia mais parte daquele grupo, estava livre do legado de suas sandices. Sem cair na obviedade de me desvincular das atrocidades já cometidas por eles – esta seria uma forma tipicamente bípede de argumentar – estava isento das preocupações, da ética e da lógica que os regem.

Tive vontade de explicar ao colega intimidador que, naquele momento, deliciava-me mais que qualquer outra vantagem a de estar livre daquela insuportável capacidade que têm seus congêneres de complicar tudo ao redor, dos mais simples eventos da natureza até os exercícios de micro-economia. Os trácios, por exemplo, ancestrais de tantos bípedes modernos, atiravam flechas para o céu nas noites de tempestade, que acreditavam ser uma declaração de guerra dos deuses. Teriam ao menos tomado o cuidado de não lançar aquelas flechas em ângulo íngreme demais, para evitar produzir uma chuva verdadeiramente perigosa de projéteis descendentes? Por que não apenas despir-se e dançar nus, sob a chuva?

Em outra parte do mundo, os rastafáris construíram a crença de que Jah, no dia do Juízo Final, recolherá os seus carregando-os pelos cabelos. Assim justificaram os complicados penteados em dread lock, que serviriam de alças consistentes, para facilitar a empunhadura divina no dia do arrastão celestial. Teriam ao menos tido a preocupação solidária de desenvolver técnicas de implante capilar, para dar a seus correligionários calvos a possibilidade de Salvação? Por que não apenas pedir à divindade que os agarrasse pelos braços – ou pelas orgulhosas pernas bípedes?

Além de criar complexidades desnecessárias, o grupo do qual fui banido é pródigo em explicá-las com termos inextricáveis. Observe-se a crise econômica que atualmente se alastra pelo mundo, por exemplo. As explicações que escutamos culpam um insólito Subprime por tudo o que acontece. Se as línguas dos bípedes fossem ferramentas de comunicação bem-acabadas, com palavras comprometidas em se assemelhar às Coisas representadas, perceberíamos sem dificuldade que o termo “Subprime”, na verdade, é talhado sob medida para referir-se a um vilão com super-poderes. Posso imaginar o abominável Subprime observando a cidade do alto de sua torre, maquinando maldades, os olhos frios brilhando no rosto encoberto pela máscara azul e negra decorada com um “S” estilizado.

Ainda tentando compreender o que acontece, aprendemos que as Autoridades Monetárias estão ocupadas em resolver o problema. Novamente, o termo é desajeitado: seria mais razoável que “Autoridade Monetária” designasse uma heroína vestida de xerife, a guardiã da sociedade, com seu sorriso capaz de inspirar confiança e seu distintivo brilhante. Seria a única capaz de conter a Crise causada pelo odioso Subprime. O rádio central da polícia difundiria, urgente: “Subprime foi avistado na rua 7, precisamos chamar a Autoridade Monetária para detê-lo!” Um sinal luminoso em forma de cifrão seria projetado nos céus da cidade.

Quando começamos a crer que tomamos pé na situação, lemos que a Autoridade Monetária agora recorre ao Swap Reverso para mitigar os efeitos do colapso financeiro. Sem dúvida, “Swap Reverso” refere-se, para qualquer ser ainda não contaminado pelos vícios bípedes, a um poderoso tapa aplicado com a mão esquerda (se fosse com a mão direita, bastaria dizer “Swap”). E, como mágica, tudo se deslindaria em uma frase: a Autoridade Monetária, com o Swap Reverso, derrubou o Subprime em mais uma batalha.

Mas respostas auto-evidentes não satisfazem os avaliadores que criam os exercícios de economia – alguns deles, como a questão 7, verdadeiros testes para avaliar a quantidade de patas que usamos para nos locomover. Sem ressentimento nem pesar, tomo a decisão: vou amanhã comprar minha bengala, para poder exercer orgulhosamente minha tripedia.

Tuesday, September 23, 2008

Retalhos

O crepúsculo se demora sobre o deserto
O vendaval espera o momento
Então preciso costurar
Para cobrir o deserto
Acender as lâmpadas
Que desfaçam o lusco-fusco
Que resistam ao vendaval.

A menina vestida de rendas
Tocava piano no caos.
Uma noite abriu as asas
Cansada de tanto som,
Equilibrou-se no azul,
De tonta não mais olhou
Para mim, (mas para alguém?)
Caiu no álbum de retratos.

Mas não foi sempre assim.
No início era o sol.

E sua sedução era menos
de mulher do que de casa;
pois vinha de como era por dentro
e por detrás da fachada.

Mesmo quando ela possui
A mesma plácida elegância,
O mesmo reboco claro,
Riso franco de varandas,

uma casa não é nunca
só para ser contemplada;
melhor: somente por dentro
é possível contemplá-la.

Seduz pelo que é dentro,
ou será, quando se abra;
pelo que pode ser dentro
de suas paredes fechadas;

pelo que dentro fizeram
com seus vazios, com o nada;
pelos espaços de dentro,
não pelo que dentro guarda;

pelos espaços de dentro:
seus recintos, suas áreas,
organizando-se dentro
em corredores e salas,

os quais sugerindo ao homem
estâncias aconchegadas,
paredes bem revestidas
ou recessos bons de cavas,

exercem sobre esse homem
efeito igual ao que ela me causava:
a vontade de corrê-la
por dentro, de visitá-la.

Mas hoje só há distância.
E hoje amealho autoperguntas.

Por que amou por que amou
se sabia
p r o i b i d o p a s s e a r s e n t i m e n t o s
ternos ou desesperados
nesse museu do pardo indiferente
me diga : mas por que
amar sofrer talvez como se morre
de varíola voluntária vágula evidente?

ah PORQUEAMOU
e se queimou
todo por dentro por fora nos cantos ecos
lúgubres de mim mesmo
irm (ã,o) retrato espetáculo por que amou?

se era para
ou era por
como se entretanto todavia
toda via mas toda vida
é indagação do achado e aguda espotejação
da carne do conhecimento, ora veja

(E me ofereço autorespostas:)

permita cavalheir (o,a)
amig (o,a) me releve
este malestar
cantarino escarninho piedoso
este querer consolar sem muita convicção
o que é inconsolável de ofício
a morte é esconsolável consolatrix consoadíssima
a vida também
tudo também
mas o amor car (o,a) colega este não consola nunca de núncaras

E resta o silêncio do tentado.

De modo que quando o vendaval chegar
(Não sei se duro ou caroável),
talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
- Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.

Eu fiz o que podia que achei que você queria.

E se é para ser assim, um álbum de retratos,
Que eu tenha ao menos com que me cobrir:
Uns retalhos de MuriloMendesJoãoCabralCarlosDrummondManuelBandeira
E uns pedaços de mim mesmo
Antes que a noite chegue
Antes do vendaval.

(Poemas respeitosamente mutilados aqui, por uma causa maior que todos eles: “Pré-história”, ”A mulher e a casa”, “Amar-amaro” e “Consoada”).

Saturday, September 20, 2008

Epístolas da Deprelândia (II)

O bar do Paulão é o esconderijo perfeito. Lugar de neutralidade absoluta, daqueles que deus e o diabo escolhem para botar a conversa em dia, aos domingos. O copo tem sempre gosto da boca do penúltimo bêbado (assumindo que você será o último, pelo menos do seu ponto de vista), o amarelo das paredes das mesas da cerveja se encontram para neutralizar o azul da noite.

Na tevê, o Pica-Pau serra a escada sobre a qual se encontrava o cão Measles - e ele, ao perceber, ainda acena para a câmera antes de cair e virar uma nuvenzinha de poeira, no chão. Identifico-me com Measles e tenho raiva de quem sai por aí serrando escadas. Quanto tempo se passará até que o cachorro consiga uma escada nova? E quanto tempo mais até que possa galgar os degraus até o topo? - ainda que seja um canino bípede e falante, e portanto não constrangido por limitações triviais... E, por mais que emerja íntegro de sua triste nuvenzinha, quem pode assegurar que encontrará o Pica-Pau? O Dia de Measles não será televisionado.

O Paulão em pessoa não sai de perto da churrasqueira de zinco. Prefere não beber porque tem dor de cabeça - disse a uma habituée. De vez em quando se vira e lança um olhar neutro, dordecabeçado, em minha direção. Obrigado, Paulão: farei escadas, para mim e Measles, com seus espetinhos mistos.

O Lúcio é o garçom, ele emprestou a caneta. Não perguntou para quê, com sua discrição típica de um lúcio. Os lúcios não são néscios, e sabem que a jácula causa mácula, já que nunca se viu - nem verá - uma moça ejaculada que permaneça imaculada. A caneta saiu de cima da orelha, mas minha expectativa de que ela trouxesse, além de sebo, idéias, se mostrou vã. Talvez Lúcio, o paramécio, também não esteja com os pensamentos em ordem.

Conversam sobre virgindade atrás de mim, sem saber que sexo é um tema delicado, quando se está de coração partido. Imaginá-la nua em outra companhia só não é pior que vê-la olhar para alguém como olhava para mim, ou afagar a nuca de alguém como afagava a minha.

Peço 18 espetinhos - preciso começar a fazer uma escada.

Tuesday, September 16, 2008

Epístolas de Deprelândia (I)

À medida que se vive, a tristeza vai perdendo suas confortáveis tonalidades líricas, seu desconsolo glamouroso, sua profundidade inspiradora. Torna-se um amargo impaciente, uma irritação destrutiva, uma aridez inescapável. Uma úlcera - nada mais.

Ao deixar de alegremente sofrer as noites de Paris, Rimbaud fez da metáfora a vida e foi exilar-se da poesia no sol e no sal magrebino. Entendeu que a dor era surda às palavras que ejaculava, faminta de um silêncio que não reverberasse tanto.

Ao se derramar sobre a anima, a tristeza erode com tal fúria o verbo que não deixa, à sua passagem, o mais inexpressivo sinal gráfico, o mais inaudível suspiro. Tão brutal que se permite contemplar com indiferença do topo do mundo. E tão particular que abandona os soluços e gemidos, os clamores e estampidos, para ir se encostar, numa noite de terça-feira, no fundo ermo da minha geladeira.

Monday, June 2, 2008

Pense bem antes de acertar

Ibrahimovic recebeu um passe complicado; dividiu corajosamente com um zagueiro neandertal e manteve a posse de bola; cortou para dentro da área e deixou um marcador no chão; com uma ginga atribuída exclusivamente a brasileiros e argentinos, deixou no chão o segundo; mudou bruscamente de direção para derrubar o terceiro e ainda deu uma paradinha, antes de tocar para o gol, com muita categoria. Um lance genial, mas inteligível. Em vez dos malabarismos antigravitacionais que vemos por aí, uma sequência lógica de movimentos perfeitamente executados.

Quando jogava pela seleção da Octogonal 2, vivi um momento parecido. Dividi com o beque e ganhei; entrei na área e, driblando, passei por dois; mas, quando armei o chute, senti a bola se distanciando. Tentei ajustar o pé de apoio, e na minha versão da jogada do Ibrahimovic, quem terminou no chão fui eu. Resguardadas minhas limitações físicas e técnicas, esse detalhe faz a diferença entre eu e o atleta sueco: hoje, eu pago cinco reais por hora pelo aluguel da quadra lá no Arena, ele ganha milhões de euros pra jogar nos maiores estádios do mundo. Nascemos no mesmo ano, e, em algum lugar ao longo de nossas trajetórias, a capacidade de manter o pé de apoio firme determinou que um de nós fosse rico e jogasse no Ajax da Holanda – terra da tulipa, da maconha e das mulheres com mais de 1,80 metro – e o outro fosse gordo e míope. Ele tem centenas de gols obsessivamente analisados por fãs ávidos no YouTube, enquanto ninguém jamais se lembrará dos meus lances nos gramados – à exceção daquele frango na final da Semana Cultural da 8ª série, mas esse não conta porque a bunda gorda do Igor encobria parcialmente minha visão.

Forçando a mão no paralelismo entre minha história e aquela de Zlatan Ibrahimovic, poder-se-ia estabelecer também a diferença entre o medíocre e o excelente. Entre o talento não-realizado e o desenvolvido, estimulado e florescente. Não duvido de que, como eu, ele também já tenha vivido derrotas. Quiçá até já caiu no chão, tentando materializar a jogada sonhada. Mas, na maior parte das vezes, consegue realizar com as pernas aquilo que acontece em sua cabeça. Eu não consigo realizar de jeito nenhum o que se passa na minha.

Ibrahimovic está no auge, eu ainda nem comecei minha escalada profissional. Em cinco anos, dez, no máximo, o sueco deve se aposentar, e terá todo o tempo livre para cultivar suas paixões e dedicar-se ao aprimoramento pessoal. No mesmo prazo, espero estar trabalhando ainda com frescor idealista, embora já escorado em alguma experiência, sem tempo nenhum para veleidades. Ele, então, continuará acumulando capital quase na proporção do PIB de um pequeno país por meio de contratos publicitários, eu comprarei meu primeiro apartamento com prestações a serem pagas em 35 anos.

É claro que ele sentirá o baque quando perceber que a fama é uma amante ingrata, que deixa os homens tão subitamente quanto os seduz. Deixará de ser reconhecido à porta dos restaurantes que freqüenta, notará que a faixa etária dos poucos que ainda lhe pedem autógrafos é cada vez mais alta. Nessa altura, estarei assumindo minhas primeiras posições de chefia. Mais pragmático, manterei meus ideais inscritos em frases de motivação distribuídas periodicamente a meus comandados, mas intimamente saberei que muito já será se fizer o melhor que posso.

Ibrahimovic, ao aproximar-se da meia-idade, ganhará uma placa no Estádio Olímpico de Estocolmo. O fato deve ganhar no máximo uma breve referência nos jornais. O brilho do passado refulgirá brevemente sobre o presente, mas não tardará a desvanecer: e o ex-atleta encontrará refúgio no tripé alcoól-drogas-prostitutas. Será preso duas vezes, uma delas por tentar beijar Paris Hilton – também já decadente – à força. Virá ao Brasil passar férias e dar uma entrevista insossa ao sucessor do Jô Soares - ou ao próprio, caso se confirme sua propensão ao não-envelhecimento. Protagonizará uma cena ridícula, dançando samba com a Sasha.

Por volta dos 50 anos, estarei no auge da carreira e da produção intelectual. Publicarei um livro medíocre; pois, como nunca pude dedicar-me exclusivamente à literatura, jamais cheguei a refinar minha técnica. Ainda assim, ele venderá bem entre meus funcionários, puxa-sacos e familiares, e me renderá uma aura de erudição, que tratarei de matizar com uma humildade estudada. Trabalharei menos, ganharei mais, poderei ver meus filhos crescerem. Nenhum deles saberá quem foi Zlatan Ibrahimovic, e eu poderei finalmente fazer a tão sonhada viagem à Holanda do Ajax.

Ainda bem que, naquela manhã fatídica de 1991, perdi o pé de apoio, fui ao chão e não concluí minha boa jogada. Ainda bem que nunca cheguei a realizar meu talento. Coitado do Ibrahimovic.

Thursday, May 15, 2008

O sexo e a verdade

Uma guerra deve ficar para sempre fora das negociações de paz: a guerra dos sexos. Ela é fonte inesgotável de mal-entendidos e piadas preconceituosas (mas engraçadas), antídoto para falta de assunto em rodas de amigos bêbados. O blog Gaveta das Calcinhas se dispôs a cumprir o papel de correspondente do front, nos campos de batalha do Rio Grande do Sul. Mais que apenas documentar, têm a intenção declarada de atiçar ainda mais este delicioso conflito os posts de Angélica Seguí e outras colaboradoras – assumo, julgando pelo título do blog, que sejam todas mulheres; ainda que, vejam bem, não tenha nada contra homens que tenham gavetas de calcinhas, seja por fetiche, transformismo ou ronaldismo. Mas quase tão saborosos quanto os textos em si, e essenciais para que a queda de braço inter-gêneros se perpetue na forma de uma estranha dança do acasalamento cibernética, são os comentários aos posts.

De cara, numa triagem preliminar, dá para separar dois tipos básicos de posicionamento masculino, frente aos imbróglios com suas contrapartes femininas: o sincero e o hipócrita. O hipócrita é aquele que tenta falar o que acha que as mulheres querem escutar. O que pensar de uma menina que faz sexo na primeira noite? “Bem, acho que todos têm o direito de ser feliz... etc, etc... o sexo é um prazer sublime... etc, etc... essencial para que duas pessoas se conheçam de verdade... etc,etc.” Querem os homens saber sobre as relações pregressas de suas respectivas? “Bom, acho que toda relação se constrói com respeito à verdade... etc, etc... se houver maturidade e companheirismo... etc, etc... quando a pessoa gosta, o que importa é o futuro... etc, etc.”

Faz lembrar um amigo meu que ficou grávido no fim da adolescência, e, numa incrível manobra de sobrevivência sexual, ele transformou a filha encomendada em super-trunfo da conquista. Ainda que ame a filhinha, ela foi o adorável resultado de sua irresponsabilidade juvenil. No entanto, era comum escutá-lo sussurrando com voz grave, ao pé do ouvido da vítima escolhida para a noite, coisas como “ser pai é a coisa mais maravilhosa do mundo... etc, etc... agora eu vivo para outra pessoa, não para mim... etc, etc.” E assim por diante. Seu tempo médio entre o início do xaveco e o amasso bem-sucedido caiu de 3h30 para 45min.

Os sujeitos mais atentos não demoram a perceber que, em termos gerais e resguardadas curiosas exceções, elas são atraídas por:

1) Algum signo de poder. Pode ser um corpo alto e bem esculpido, um rosto bonito, uma inteligência que ofusque as outras ao redor, uma posição social destacada, uma posição hierárquica superior, dinheiro, popularidade, fama, etc. Mas a verdade é que todos esses aspectos de poder são efêmeros; e a barriga, não. Concluíram outro dia que o tecido adiposo permanece inalterado a partir dos 20 anos, quando então fica fácil engordar e difícil emagrecer. Eu já tinha comprovado isso sozinho, senhores cientistas. Também não passa o gosto por futebol e cerveja, que eventualmente se transformam no universo do camarada. Não passam – e podem mesmo se acentuar – as manias de arrotar e soprar para o lado, virar a cabeça para acompanhar a passagem de ninfetas e outras desagradabilidades.


2) Um discurso ponderado. Deve ser a Natureza dizendo uma daquelas coisas que a Natureza gosta de dizer: “ele é responsável e pode ser um bom provedor para eventuais descendentes”. A mulher gosta, ainda que negue, de ser induzida a pensar que está com um cara minimamente sensível. Esse limiar de sensibilidade já foi mais alto: hoje, basta que o cara não seja uma serra elétrica ligada. Mas, nesse ponto, fazer comentários “cabeça aberta”, ser anti-machista, conta pontos. O problema é que as mulheres mais sagazes já começam a identificar os clichês mais pisados pelos cínicos. O que, trocando em miúdos, quer dizer que parecer sensível está dando mais trabalho.

Normalmente uma das duas características costuma bastar. A soma das duas configura um Marido potencial. Não se culpem as mulheres – elas o fazem inconscientemente e, a rigor, têm razão em procurar essas coisas. Nós, expostos como estamos à seleção, temos que colocar a melhor vitrine – portanto, não sejamos culpados por eventuais... hm... insinceridades. Todo homem com algum sucesso no terreno da conquista tem um pequeno publicitário misógino lhe soprando idéias nos ouvidos.

Mas é surpreendente que haja também aqueles que apostam em respostas sinceras. Palmas para quem inventou o papo de que sinceridade é uma coisa bacana, e a transformou num valor. Alguns caras não hesitam em falar que acham que a mulher se desvaloriza, ao fazer sexo na primeira noite, outros não se importam em dizer que ouvir a mulher falar sobre suas relações anteriores é um exercício de masoquismo e autopenitência. Expressam inconscientemente perceber o laço sobrenatural que liga a virgindade à pureza, e a pureza a uma qualidade desejável no ser feminino. Talvez seja biológico, talvez seja cultural. Mas está lá e todos sentimos sua presença, ainda que alguns lutemos para nos desfazer dessa influência, em nome dos “tempos modernos”.

Escreveu Ortega y Gasset que dizer o que pensamos “... tampoco nos hace ver francamente la verdad estricta: que siendo al hombre imposible entenderse con sus semejantes, estando condenado a radical soledad, se extenúa en esfuerzos para llegar al prójimo. (...) Dóciles al prejuicio inveterado de que hablando nos entendemos, decimos y escuchamos tan de buena fe, que acabamos muchas veces por malentendernos mucho más que si, mudos, procurásemos adivinarnos”.

Entre homens e mulheres, homens e homens, mulheres e mulheres, olhares e toques (e uma palmadinha de vez em quando) deveriam bastar. O resto é apenas um fascinante e difuso supérfluo.