Thursday, April 24, 2008

O menino selvagem

Um colega de cursinho – sujeito brilhante, esforçado, e com três anos de estudo acumulados com persistência mirada no mesmo disputadíssimo concurso – admitiu que não agüenta mais a pressão. Contou que almoçava com o pai numa quarta-feira, como tradicionalmente faziam, quando o genitor mencionou que teria novas responsabilidades no trabalho e por isso talvez precisassem mudar o dia do encontro semanal. Certamente não seria problema para o meu amigo, já que ele “não fazia nada, mesmo”, disse o pai, sorrindo cruelmente.

Toda sociedade arrasta consigo um peso morto, nessa gloriosa Caminhada das Civilizações. Está no contrato: vamos levando os imprestáveis, já que um dia seremos velhos, ou doentes, ou fodidos de algum outro jeito, e precisaremos ser levados também. Mas dentro do gênero dos Pesos Mortos, existem sub-espécies desprovidas de qualquer dignidade, escorraçadas até mesmo pelos sociopatas. É gente que os assassinos se recusam a matar e os ladrões, a roubar; gente que, depois de morta, deve ser incinerada, pois até mesmo os vermes rejeitariam sua carne. Quem exatamente são esses leprosos sociais, depende do grupo em questão. Em geral, são aqueles que representam antinomias aos valores sobre os quais as sociedades se baseiam. Aleijados de guerra em comunidades belicosas, velhas viúvas em sistemas machistas. Em nosso mundo ocidental capitalista cristão, são os desempregados em faixa etária economicamente ativa. Maldito o momento em que escreveram “A ética protestante e o capitalismo”.

O contexto é irrelevante para o linchamento público velado. O caso do meu amigo é exemplo. Fato é que se instituiu entre nós, infelizmente, a meritocracia. Aplicada a determinadas carreiras do serviço público, significa que o único meio de se chegar a elas é estudando. Devia ser muito mais fácil quando o sujeito já sabia, ao nascer, quais eram suas possibilidades reais. Se fosse a enxada, a enxada seria. Se tivesse um nome, o bacharelado em direito garantiria a nomeação para algum cargo público. Hoje, a possibilidade de se conseguir um emprego de sonhos acena para qualquer um – mas se situa ao fim de um caminho coalhado de minas terrestres e feras, que deve ser percorrido pelo candidato sob uma perene chuva de ácido e merda. Para o pai do meu amigo, seu status atual de “estudante” é um álibi grosseiro para sua verdadeira e deplorável condição.

Solidarizei com o sujeito porque também sinto a mão fria da culpa no pescoço, e percebi que preciso proclamar o valor de nossa categoria, antes que sejamos utilizados em experiências genéticas ou transformados em biocombustíveis. As horas do dia do estudante são repletas de tentações, e escorrem em extenuantes batalhas internas, que põem à prova a força de vontade e solidificam o caráter tanto quanto ou mais que qualquer trabalho stricto sensu. Estudar ou dar uma dormidinha rápida? Estudar! Estudar ou jogar aquele irresistível jogo de computador, por meia horinha que seja? Estudar! Estudar ou convocar o cônjuge para uma tarde de lascívia entre os lençóis? Estudar! Estudar ou aproveitar a tarde de sol pra tomar uma cerva geladíssima com um amigo? Estudar! Estudar! Estudar!

Há pesquisas que demonstram ser impossível assimilar conteúdo sem pausas periódicas. Perfeitamente saudável parar por 15 minutos entre blocos de duas horas metido em livros – dir-se-ia. Mas o estudante, culpado, não consegue relaxar. A dormidinha rápida são 15 minutos de pesadelos derrotistas; jogo de computador, só se for xadrez, que pelo menos estimula o racioncínio; tomar cerveja só se for com alguém na mesma situação que a sua. Ver televisão, só se for algum programa que, em suma, te faça um cara melhor, de algum jeito.

Foi assim, descansando construtivamente, que assisti outro dia a um documentário sobre crianças que se perdem em ambientes selvagens e são encontradas anos depois. Não sabia que histórias como as de Rômulo e Remo, Mogli e Tarzã já haviam ocorrido, com tanta freqüência, na vida real. Teve o caso do menino Victor de Aveyron, imortalizado por Truffaut; Amaia e Kamala, as meninas-lobo indianas, e alguns outros. Fiquei ainda mais surpreso ao descobrir que todos esses casos apresentam algumas semelhanças entre si. Depois de sobreviverem miraculosamente em ambientes naturais, essas crianças passaram por uma série de traumas ao serem reintegradas ao convívio social. Em maior ou menor grau, conseguiram aprender a caminhar em postura ereta e assimilaram alguns dos costumes ditos “civilizados”. Por outro lado, nenhum desses meninos selvagens conseguia permanecer por tempo indeterminado nos ambientes fechados em que a civilização se constrói – e nenhum deles jamais conseguiu dominar a fala, embora todos pudessem balbuciar algumas palavras esparsas.

Imagino o pequeno menino selvagem que deve existir em cada um de nós se debatendo dentro do meu amigo, durante o almoço com o pai, louco para jogar o prato de comida na cabeça do coroa e sair correndo, sobre quatro patas, para algum lugar onde não houvesse palavras bastantes para julgá-lo.

Wednesday, April 2, 2008

Major

O Major, que é chamado Major apesar de nunca na vida ter vestido uma farda, passou a adolescência fazendo rondas no interior da Bahia. Vivia perambulando na “mata” – ele conta assim, de forma genérica – prestando pequenos serviços, levando recados ou simplesmente vendo o tempo passar. Foi numa dessas voltas, ao entardecer, na companhia de um amigo, que viu um fantasma pela primeira vez.

- Era um vulto branco, assim, como se fosse uns pedaços de plástico agarrados na árvore – descreveu.

A segunda vez que o Major viu um fantasma foi recentemente, no Guará. Desceu na parada de ônibus costumeira, dobrou, como sempre, as sinistras esquinas que o levariam até sua casa e, num beco deserto, viu uma velha de capuz. Apressou o passo, deixando-a para trás – mas, pouco adiante, apiedou-se e decidiu voltar para oferecer ajuda à pobre. Ela havia desaparecido. Só então, se dando conta da natureza sobrenatural da senhora, sentiu palpitar na garganta o coração e nas pernas a vontade de correr. Controlou-se e caminhou até o destino, lançando esporadicamente à noite guaraense, por via das dúvidas, manifestações verbais de suas boas intenções, bom coração e vontade de viver. Orgulhou-se de sua coragem.

- Quando eu tô sozinho, não tenho medo de fantasma. Mas se tiver alguém comigo, é outra história. O medo mesmo é aquele que os vivos colocam uns nos outros... – resumiu.

Eu não conheceria o Major se a dona Chica não tivesse renunciado à tesoura para concentrar-se nas atividades de manicure e fofoqueira. Um dia qualquer, cheguei ao salão em que corto os cabelos desde antes de os ter, e o Major era o único profissional disponível. Imediatamente, enquanto tascava máquina três em três quintos da minha superfície capilar, encetou uma conversa para-filosófica sobre a bondade humana – um de seus temas preferidos – baseada nalgum crime particularmente cruel que estivera em evidência.

- O problema do mundo é que algumas pessoas são boas. Outras, não.

Frequentemente passo em frente ao salão e vejo Major olhando para a rua parada, ensolarada, pesada. Não é aquele olhar obtuso das ausências introspectivas que todos temos (uns mais que outros), mas a tradução física dos intrincados processos por meio dos quais desvela dentro de si os segredos universais. Nos 17 minutos que leva para me tosquiar, costuma me agraciar com alguma nova descoberta.

- O homem não dominou a natureza só porque é inteligente. Na verdade, estamos aqui hoje porque podemos comer de tudo, qualquer coisa. O tubarão, por exemplo, é um animal perfeito, mas não vingou. E por que não? Porque não come de tudo. Você nunca vai ver um tubarão comendo frango, por exemplo.

Desde então, a imagem do predador marinho mastigando delicadamente um frango que inexplicavelmente foi parar no fundo do mar é, para mim, a melhor alegoria para o declínio do homo sapiens. Que não virá enquanto houver gente como o rapaz que corta cabelos naquela salinha singela, na Asa Sul. Longa vida ao Major!