Tuesday, November 11, 2008

Eles, os bípedes

Um sujeito no cursinho tentava intimidar os colegas, no intervalo de uma longa bateria de exercícios de economia.

- A questão 7 era fácil demais. Tinha que ser quadrúpede, para errar aquela.

A sentença excluía-me sumariamente do grupo evolutivo a que eu acreditava pertencer. O fato de não ter passado longe da resposta correta me garantiria, no máximo, com alguma benevolência, a condição de trípede. Ofendido, cheguei a formular minha defesa hipotética.

- Você se equivoca quanto ao epíteto, nobre colega – redargüiria eu – Alguns dos melhores seres com que tive a honra e o prazer de conviver eram quadrúpedes.

- Melhores em que aspecto? – instigaria ele.

- Em vários.

- Por exemplo...?

- Por exemplo, no senso de humor – finalizaria eu, triunfante.

Preferi poupar-nos a ambos do pugilato verbal, que poderia tomar rumos surrealistas; e, admito, a vaidade jamais me permitiria confessar a derrota diante da fatídica questão. Mas, quando voltei à sala de aula, percebi que algo se havia quebrado dentro de mim. Deslocado da posição que costumava ocupar em relação ao número de pontos de apoio que mantenho com o solo durante o ato de andar, olhava agora para os bípedes ao meu redor repleto de hostilidade.

Simultaneamente, percebi que com a antipatia vinha uma inusitada sensação de liberdade. Extasiado, começava a entender que, se não fazia mais parte daquele grupo, estava livre do legado de suas sandices. Sem cair na obviedade de me desvincular das atrocidades já cometidas por eles – esta seria uma forma tipicamente bípede de argumentar – estava isento das preocupações, da ética e da lógica que os regem.

Tive vontade de explicar ao colega intimidador que, naquele momento, deliciava-me mais que qualquer outra vantagem a de estar livre daquela insuportável capacidade que têm seus congêneres de complicar tudo ao redor, dos mais simples eventos da natureza até os exercícios de micro-economia. Os trácios, por exemplo, ancestrais de tantos bípedes modernos, atiravam flechas para o céu nas noites de tempestade, que acreditavam ser uma declaração de guerra dos deuses. Teriam ao menos tomado o cuidado de não lançar aquelas flechas em ângulo íngreme demais, para evitar produzir uma chuva verdadeiramente perigosa de projéteis descendentes? Por que não apenas despir-se e dançar nus, sob a chuva?

Em outra parte do mundo, os rastafáris construíram a crença de que Jah, no dia do Juízo Final, recolherá os seus carregando-os pelos cabelos. Assim justificaram os complicados penteados em dread lock, que serviriam de alças consistentes, para facilitar a empunhadura divina no dia do arrastão celestial. Teriam ao menos tido a preocupação solidária de desenvolver técnicas de implante capilar, para dar a seus correligionários calvos a possibilidade de Salvação? Por que não apenas pedir à divindade que os agarrasse pelos braços – ou pelas orgulhosas pernas bípedes?

Além de criar complexidades desnecessárias, o grupo do qual fui banido é pródigo em explicá-las com termos inextricáveis. Observe-se a crise econômica que atualmente se alastra pelo mundo, por exemplo. As explicações que escutamos culpam um insólito Subprime por tudo o que acontece. Se as línguas dos bípedes fossem ferramentas de comunicação bem-acabadas, com palavras comprometidas em se assemelhar às Coisas representadas, perceberíamos sem dificuldade que o termo “Subprime”, na verdade, é talhado sob medida para referir-se a um vilão com super-poderes. Posso imaginar o abominável Subprime observando a cidade do alto de sua torre, maquinando maldades, os olhos frios brilhando no rosto encoberto pela máscara azul e negra decorada com um “S” estilizado.

Ainda tentando compreender o que acontece, aprendemos que as Autoridades Monetárias estão ocupadas em resolver o problema. Novamente, o termo é desajeitado: seria mais razoável que “Autoridade Monetária” designasse uma heroína vestida de xerife, a guardiã da sociedade, com seu sorriso capaz de inspirar confiança e seu distintivo brilhante. Seria a única capaz de conter a Crise causada pelo odioso Subprime. O rádio central da polícia difundiria, urgente: “Subprime foi avistado na rua 7, precisamos chamar a Autoridade Monetária para detê-lo!” Um sinal luminoso em forma de cifrão seria projetado nos céus da cidade.

Quando começamos a crer que tomamos pé na situação, lemos que a Autoridade Monetária agora recorre ao Swap Reverso para mitigar os efeitos do colapso financeiro. Sem dúvida, “Swap Reverso” refere-se, para qualquer ser ainda não contaminado pelos vícios bípedes, a um poderoso tapa aplicado com a mão esquerda (se fosse com a mão direita, bastaria dizer “Swap”). E, como mágica, tudo se deslindaria em uma frase: a Autoridade Monetária, com o Swap Reverso, derrubou o Subprime em mais uma batalha.

Mas respostas auto-evidentes não satisfazem os avaliadores que criam os exercícios de economia – alguns deles, como a questão 7, verdadeiros testes para avaliar a quantidade de patas que usamos para nos locomover. Sem ressentimento nem pesar, tomo a decisão: vou amanhã comprar minha bengala, para poder exercer orgulhosamente minha tripedia.