Friday, February 22, 2008

O triste retorno do Macho Burro

Os sinais são tantos que já não se os pode mais ignorar: a humanidade está no limiar de uma nova idade das trevas. É inegável. O amor livre, resultado de milênios de depuração social e aperfeiçoamento dos códigos sexuais, cede espaço a irritantes legiões de jovens defensores da abstinência até o casamento. O humanismo esclarecido, filho do ecumenismo tolerante e do ateísmo otimista, é molestado por vagas de fanatismo religioso em todas as direções. O “quem sabe faz a hora, não espera acontecer” se cala diante do “Hosana na alturas” e demais cânticos dedicados a deuses tão diversos quanto absurdos, e cada vez mais pessoas deixam de fazer a hora para esperar seu lugar num paraíso qualquer fazendo nada mais que adorar. O efeito narcotizante das imagens cagadas pela tevê nos últimos 60 anos já é fichinha perto do emburrecimento atônito a que o bombardeio eletrônico atual conduz. Com seu frenesi estupefaciente, a internet condena o futuro previsível. Seus predecessores, os videogames, transformaram centenas de grandes potenciais da minha geração em macacos com admirável coordenação motora fina.

Os inumeráveis aspectos do fenômeno e as respectivas inter-relações seriam objetos para todo um volume. Aqui, quero considerar apenas um sintoma do novo obscurantismo – o retorno do Macho Burro. Claro que se pode alegar que sempre houve machos burros; no limite, dir-se-ia que a maior parte dos machos é e sempre foi burra. Mas trata-se aqui do sucesso social desse tipo de cara. Para entender melhor a volta, talvez seja melhor falar um pouco sobre seu ocaso, no passado.

Quando o iluminismo empurrou para escanteio os Machos Burros medievais, personificados nos cavaleiros com queixos protuberantes que se espancavam em torneios de justa, o macho alfa passou a ser o empoado intelectual com sua peruca de longos cachos brancos. Essa figura deu lugar ao jovenzinho tuberculoso, tão apetitoso para as donzelas da época quanto mórbido em sua expectativa de vida de 20 anos. Depois, o romântico metamorfoseou-se no revolucionário socialista incendiário – um insone de barba mal-feita, hálito de vodca e sonhos vãos. Cansado das lutas, esse macho esqueceu as palavras rudes, arrumou a gravata e, frustrado no intento de mudar o mundo, foi revolucionar a arte. O dândi não tem calos nas mãos, mas anéis nos dedos.

O século XX alvoreceu e por ele o macho foi um beatnik trágico, um roqueiro com sua guitarra, um hippie com seu fornecimento exclusivo de maconha, um yuppie com seu carro esporte. O macho teve essas e tantas outras facetas altivas antes de retornar a seu estado bruto. Literalmente. Mas o que lhe teria acontecido, ao Macho Não-Burro? Quem seria responsável por sua Queda?!

A resposta é incontornável: o único ser capaz de convulsionar o homem em sua essência é a mulher. Foram, portanto, as mulheres quem mataram o bom macho e trouxeram de volta o tosco. Começou quando elas passaram a queimar sutiãs. Para nós, dotados de pênis, os sutiãs eram defesas contra a ameaça pontiaguda dos mamilos. Sem eles, estávamos perdidos – a queda seria questão de tempo. Expostos, perdemos tudo: lugares no mercado de trabalho, o direito de considerar a mulher uma propriedade privada, o dever de abrir a porta do carro e de mandar flores no dia seguinte. Não foram poucos os que abandonaram o barco em chamas e viraram gays.

No entanto, antes que a Resistência pudesse se organizar, as mulheres deram o golpe de misericórdia: passaram a nos tratar como eram antes tratadas por nós. Ou seja, como objetos. E não há espécime masculino mais adequado ao usufruto que o Macho Burro. Os outros machos podem acabar se apaixonando e causando problemas.

Espero que meus filhos vivam para ver o Renascimento.

Friday, February 15, 2008

Inércia

Vencer a inércia - seja ela moral, intelectual ou, por que não?, física - é o maior e menos reconhecido desafio humano. Quando disse Martin Luther King não se admirar da maldade dos maus nem da violência dos violentos, mas da imobilidade dos justos, era a isso que se referia. Já encarei minha própria letargia nos olhos e não me esqueço. Era verão no hemisfério norte. O calor parado e as abelhas se batendo nas janelas da cozinha. Dentro da geladeira, uma única lata de milho estragado e um pote com uma pasta marrom que ninguém reconhecia nem admitia ter largado ali. E, de qualquer forma, ninguém tinha ânimo pra jogar qualquer dos dois no lixo. Noites sudorentas, insones, o piso estalando e se vergando sob o calor suspirante. Era “a grande depressão” em Strasbourg. Nada a ver com sentimentos. Pelo menos não diretamente.

O verão é baixa temporada na cidade, os termos de trabalho temporário, que normalmente vão de setembro a maio, se acabam – nem todo mundo consegue se recontratar. As aulas também chegam ao fim. Ninguém tinha dinheiro para abastecer a casa, ninguém sabia o que aconteceria quando acabasse o último tubo de desodorante que todos dividíamos. Vivíamos a ressaca de um inverno exuberante e uma primavera cheia de viagens.

Levantei cedo e imprimi o currículo que tinha preparado no dia anterior. Uma página, com foto: como os franceses gostam. Localizei os lugares que se preparavam para a copa – entrei em cada salão com anúncio de telão gigante, happy hour à coup du monde ou promoção que o valesse. Quem aposta em atrair clientela deve precisar de mão-de-obra, pensei. Quanto mais brasileira. Quanto mais barata e disposta a ficar por um só mês. Depois, fui aos lugares que se clamam brasileiros. Mi barrio, mi gente. Depois, tentei os lugares que freqüentava.

Sete horas mais tarde, 15 cópias do CV a menos e um punhado de désolés na mochila, sentei-me à beira do rio pra conversar com meu kebab. Minha mãe me disse que nossa geração é conhecida como aquela em que os jovens não querem saber de nada. É um fenômeno sociológico mundial, selon mamma: nós, frutos dos anos 80, não temos a menor pressa pra conseguir trabalho, pra construir carreira, pra fazer família. Somos o contrário dos yuppies e já nos deram até um nome: down-shifters.

Em defesa da geração, poderia ser dito que não é apatia: é esmero. Poder-se-ia alegar que fazemos devagar para fazer bem-feito. Mas não é verdade. Simplesmente fazemos devagar, mesmo, por que fazemos sem convicção alguma.

Eu, no meu caso, sou um mimado, sortudo de não precisar me apressar na vida – e me sinto tão culpado por isso que evito pensar na minha própria condição e nego a mim mesmo minha bonança. Me identifico terrivelmente com uma certa burguesia pseudo-intelectual que nunca trabalhou na vida e se diz de esquerda; que nunca viu pobreza, mas se investe de ideais para justificar o coisa alguma. Às vezes penso comigo mesmo que queria ser artista, às vezes acho que a arte já morreu faz tempo e os artistas contemporâneos só servem para fazer o mundo de espectadores vomitar sobre o túmulo dela. E eu estou pronto para me juntar a eles, brincando serelepe de gastar recursos que em sua maioria não são meus, que eu não mereci e que poderiam ser tão melhor empregues – e voilà!, não consigo sequer escrever a palavra “dinheiro”.

E não tenho sequer a certeza de que resisti à tentação de glamourizar esse exame de consciência.

Friday, February 8, 2008

Erec e Enide (ou Geraint e Enid, ou Sai pra lá, olho gordo)

Erec resolveu seu problema de um jeito curioso, para dizer o mínimo.

Era o mais jovem cavaleiro da Távola Redonda, numa Camelot ainda rutilante de glória e esperança. Com seus companheiros de armas, vinha de longas temporadas sob o estandarte do rei Artur. Certa vez, fazia companhia à rainha Guinevère enquanto o rei e outros cavaleiros participavam de um torneio de caça, quando um cavaleiro estrangeiro, acompanhado por um anão, se aproximou. Ambos demonstraram rudeza e desrespeitaram a honra da esposa de Artur, ao chacotearem com um dos melhores servos da rainha. Guinevère ordenou então que Erec seguisse o cavaleiro e vingasse o insulto. Em sua missão, o rapaz acabou chegando a uma cidade distante e pedindo abrigo a uma família que vivia em um castelo decaído. Foi onde conheceu Enide, por quem se apaixonou perdidamente.

Em pouco, casaram-se. Erec via nos olhos da moça que figurar nos hinos dos bardos e em trovas épicas nada valia, comparado ao que tinha agora. Decidiu abandonar a vida de aventuras para dedicar cada hora de seu futuro à amada.

Rumores se espalharam pela corte de que Erec perdera o brio. Preferiria a vida doméstica, a reclusão entre os braços da esposa, em detrimento das obrigações e glórias da cavalaria. A pressão avolumou-se e atingiu Enide, que chorava escondida, à noite, pela reputação manchada do marido.

O falatório dos cortesãos e a suscetibilidade da esposa eclipsaram a morna felicidade do jovem guerreiro. Por que não podiam, ao cabo de tantas lutas, apenas constituírem uma família? Por que dava ela ouvidos às palavras envenenadas dos detratores? E, enfim, seriam essas conversas a expressão da verdade? Seria ele agora indigno do brasão que ostentava? Angustiado, Erec sentiu que precisava pôr à prova seus três mais preciosos tesouros: seu amor por Enide, o amor de Enide por ele, e seu valor como cavaleiro de Artur. E partiu, então, na que seria a maior de suas jornadas.

Enide devia ir à frente, sozinha, exposta aos perigos do caminho, sem jamais dirigir a Erec a palavra. O cavaleiro seguia em seu encalço, defendendo-a dos ardis e recuperando-a a cada emboscada. Por sua vez, Enide repetidas vezes não resistiu a quebrar a condição de não falar ao marido para adverti-lo quanto aos riscos vislumbrados. Preferia isso a deixar que Erec se expusesse mais que o necessário. Ao cabo de indizíveis aventuras - que incluíram enfrentar bandidos de estrada, gigantes e até um cavaleiro encantado - o casal se reconciliou e o cavaleiro provou seu valor. Artur e Guinevère fizeram uma festa (“the joy of the court”) em homenagem aos dois, e Erec acabou herdando as terras de seu pai.

Tem quem interprete Erec e Enide como uma imagem poética do amor verdadeiro, aquele que pressupõe que os amados devem reconquistar-se um ao outro a cada novo dia. Tem quem veja na história a alegria da volta ao lar depois de desventuras, como na ária catalã do livro de M.V. Montalbán:

Minha aldeia
Como a alma se recreia tornando a te contemplar.
Meus pagos
Após cruzar mares largos estou aqui para reencontrar.


Para mim, a versão mais antiga da lenda, escrita por Chrétien de Troyes, demonstra que desde o século XII a fofoca e as cobranças sociais são pedras no caminho da felicidade. Mesmo quando a felicidade é tão simples quanto a encontrada por Erec e Enide.

Mas desde o próprio século XII a solução é apontada, ainda que seja tão assustadoramente evidente que chega a passar despercebida: na ausência de problemas, crie-os você mesmo antes que alguém o faça por você.