Friday, February 8, 2008

Erec e Enide (ou Geraint e Enid, ou Sai pra lá, olho gordo)

Erec resolveu seu problema de um jeito curioso, para dizer o mínimo.

Era o mais jovem cavaleiro da Távola Redonda, numa Camelot ainda rutilante de glória e esperança. Com seus companheiros de armas, vinha de longas temporadas sob o estandarte do rei Artur. Certa vez, fazia companhia à rainha Guinevère enquanto o rei e outros cavaleiros participavam de um torneio de caça, quando um cavaleiro estrangeiro, acompanhado por um anão, se aproximou. Ambos demonstraram rudeza e desrespeitaram a honra da esposa de Artur, ao chacotearem com um dos melhores servos da rainha. Guinevère ordenou então que Erec seguisse o cavaleiro e vingasse o insulto. Em sua missão, o rapaz acabou chegando a uma cidade distante e pedindo abrigo a uma família que vivia em um castelo decaído. Foi onde conheceu Enide, por quem se apaixonou perdidamente.

Em pouco, casaram-se. Erec via nos olhos da moça que figurar nos hinos dos bardos e em trovas épicas nada valia, comparado ao que tinha agora. Decidiu abandonar a vida de aventuras para dedicar cada hora de seu futuro à amada.

Rumores se espalharam pela corte de que Erec perdera o brio. Preferiria a vida doméstica, a reclusão entre os braços da esposa, em detrimento das obrigações e glórias da cavalaria. A pressão avolumou-se e atingiu Enide, que chorava escondida, à noite, pela reputação manchada do marido.

O falatório dos cortesãos e a suscetibilidade da esposa eclipsaram a morna felicidade do jovem guerreiro. Por que não podiam, ao cabo de tantas lutas, apenas constituírem uma família? Por que dava ela ouvidos às palavras envenenadas dos detratores? E, enfim, seriam essas conversas a expressão da verdade? Seria ele agora indigno do brasão que ostentava? Angustiado, Erec sentiu que precisava pôr à prova seus três mais preciosos tesouros: seu amor por Enide, o amor de Enide por ele, e seu valor como cavaleiro de Artur. E partiu, então, na que seria a maior de suas jornadas.

Enide devia ir à frente, sozinha, exposta aos perigos do caminho, sem jamais dirigir a Erec a palavra. O cavaleiro seguia em seu encalço, defendendo-a dos ardis e recuperando-a a cada emboscada. Por sua vez, Enide repetidas vezes não resistiu a quebrar a condição de não falar ao marido para adverti-lo quanto aos riscos vislumbrados. Preferia isso a deixar que Erec se expusesse mais que o necessário. Ao cabo de indizíveis aventuras - que incluíram enfrentar bandidos de estrada, gigantes e até um cavaleiro encantado - o casal se reconciliou e o cavaleiro provou seu valor. Artur e Guinevère fizeram uma festa (“the joy of the court”) em homenagem aos dois, e Erec acabou herdando as terras de seu pai.

Tem quem interprete Erec e Enide como uma imagem poética do amor verdadeiro, aquele que pressupõe que os amados devem reconquistar-se um ao outro a cada novo dia. Tem quem veja na história a alegria da volta ao lar depois de desventuras, como na ária catalã do livro de M.V. Montalbán:

Minha aldeia
Como a alma se recreia tornando a te contemplar.
Meus pagos
Após cruzar mares largos estou aqui para reencontrar.


Para mim, a versão mais antiga da lenda, escrita por Chrétien de Troyes, demonstra que desde o século XII a fofoca e as cobranças sociais são pedras no caminho da felicidade. Mesmo quando a felicidade é tão simples quanto a encontrada por Erec e Enide.

Mas desde o próprio século XII a solução é apontada, ainda que seja tão assustadoramente evidente que chega a passar despercebida: na ausência de problemas, crie-os você mesmo antes que alguém o faça por você.

1 comment:

Anonymous said...

A gente pode combinar o problema? A duração e a intensidade?
Acho que uma vez depois da resolução de um problema a gente deixou isso meio que combinado, eu acho.

Esse livro é o que estava na sua mesinha de cabeceira, né? Você até me comentou sobre.


Consta na lista dos livros que eu quero ler esse semestre!

:*