Thursday, May 15, 2008

O sexo e a verdade

Uma guerra deve ficar para sempre fora das negociações de paz: a guerra dos sexos. Ela é fonte inesgotável de mal-entendidos e piadas preconceituosas (mas engraçadas), antídoto para falta de assunto em rodas de amigos bêbados. O blog Gaveta das Calcinhas se dispôs a cumprir o papel de correspondente do front, nos campos de batalha do Rio Grande do Sul. Mais que apenas documentar, têm a intenção declarada de atiçar ainda mais este delicioso conflito os posts de Angélica Seguí e outras colaboradoras – assumo, julgando pelo título do blog, que sejam todas mulheres; ainda que, vejam bem, não tenha nada contra homens que tenham gavetas de calcinhas, seja por fetiche, transformismo ou ronaldismo. Mas quase tão saborosos quanto os textos em si, e essenciais para que a queda de braço inter-gêneros se perpetue na forma de uma estranha dança do acasalamento cibernética, são os comentários aos posts.

De cara, numa triagem preliminar, dá para separar dois tipos básicos de posicionamento masculino, frente aos imbróglios com suas contrapartes femininas: o sincero e o hipócrita. O hipócrita é aquele que tenta falar o que acha que as mulheres querem escutar. O que pensar de uma menina que faz sexo na primeira noite? “Bem, acho que todos têm o direito de ser feliz... etc, etc... o sexo é um prazer sublime... etc, etc... essencial para que duas pessoas se conheçam de verdade... etc,etc.” Querem os homens saber sobre as relações pregressas de suas respectivas? “Bom, acho que toda relação se constrói com respeito à verdade... etc, etc... se houver maturidade e companheirismo... etc, etc... quando a pessoa gosta, o que importa é o futuro... etc, etc.”

Faz lembrar um amigo meu que ficou grávido no fim da adolescência, e, numa incrível manobra de sobrevivência sexual, ele transformou a filha encomendada em super-trunfo da conquista. Ainda que ame a filhinha, ela foi o adorável resultado de sua irresponsabilidade juvenil. No entanto, era comum escutá-lo sussurrando com voz grave, ao pé do ouvido da vítima escolhida para a noite, coisas como “ser pai é a coisa mais maravilhosa do mundo... etc, etc... agora eu vivo para outra pessoa, não para mim... etc, etc.” E assim por diante. Seu tempo médio entre o início do xaveco e o amasso bem-sucedido caiu de 3h30 para 45min.

Os sujeitos mais atentos não demoram a perceber que, em termos gerais e resguardadas curiosas exceções, elas são atraídas por:

1) Algum signo de poder. Pode ser um corpo alto e bem esculpido, um rosto bonito, uma inteligência que ofusque as outras ao redor, uma posição social destacada, uma posição hierárquica superior, dinheiro, popularidade, fama, etc. Mas a verdade é que todos esses aspectos de poder são efêmeros; e a barriga, não. Concluíram outro dia que o tecido adiposo permanece inalterado a partir dos 20 anos, quando então fica fácil engordar e difícil emagrecer. Eu já tinha comprovado isso sozinho, senhores cientistas. Também não passa o gosto por futebol e cerveja, que eventualmente se transformam no universo do camarada. Não passam – e podem mesmo se acentuar – as manias de arrotar e soprar para o lado, virar a cabeça para acompanhar a passagem de ninfetas e outras desagradabilidades.


2) Um discurso ponderado. Deve ser a Natureza dizendo uma daquelas coisas que a Natureza gosta de dizer: “ele é responsável e pode ser um bom provedor para eventuais descendentes”. A mulher gosta, ainda que negue, de ser induzida a pensar que está com um cara minimamente sensível. Esse limiar de sensibilidade já foi mais alto: hoje, basta que o cara não seja uma serra elétrica ligada. Mas, nesse ponto, fazer comentários “cabeça aberta”, ser anti-machista, conta pontos. O problema é que as mulheres mais sagazes já começam a identificar os clichês mais pisados pelos cínicos. O que, trocando em miúdos, quer dizer que parecer sensível está dando mais trabalho.

Normalmente uma das duas características costuma bastar. A soma das duas configura um Marido potencial. Não se culpem as mulheres – elas o fazem inconscientemente e, a rigor, têm razão em procurar essas coisas. Nós, expostos como estamos à seleção, temos que colocar a melhor vitrine – portanto, não sejamos culpados por eventuais... hm... insinceridades. Todo homem com algum sucesso no terreno da conquista tem um pequeno publicitário misógino lhe soprando idéias nos ouvidos.

Mas é surpreendente que haja também aqueles que apostam em respostas sinceras. Palmas para quem inventou o papo de que sinceridade é uma coisa bacana, e a transformou num valor. Alguns caras não hesitam em falar que acham que a mulher se desvaloriza, ao fazer sexo na primeira noite, outros não se importam em dizer que ouvir a mulher falar sobre suas relações anteriores é um exercício de masoquismo e autopenitência. Expressam inconscientemente perceber o laço sobrenatural que liga a virgindade à pureza, e a pureza a uma qualidade desejável no ser feminino. Talvez seja biológico, talvez seja cultural. Mas está lá e todos sentimos sua presença, ainda que alguns lutemos para nos desfazer dessa influência, em nome dos “tempos modernos”.

Escreveu Ortega y Gasset que dizer o que pensamos “... tampoco nos hace ver francamente la verdad estricta: que siendo al hombre imposible entenderse con sus semejantes, estando condenado a radical soledad, se extenúa en esfuerzos para llegar al prójimo. (...) Dóciles al prejuicio inveterado de que hablando nos entendemos, decimos y escuchamos tan de buena fe, que acabamos muchas veces por malentendernos mucho más que si, mudos, procurásemos adivinarnos”.

Entre homens e mulheres, homens e homens, mulheres e mulheres, olhares e toques (e uma palmadinha de vez em quando) deveriam bastar. O resto é apenas um fascinante e difuso supérfluo.

Saturday, May 3, 2008

2 reais

Autoridade moral é ao mesmo tempo uma bênção e uma maldição. No andar de cima do prédio em que funciona meu curso, tem uma Igreja. Deve ser uma sucursal da Universal do Reino de Deus, mas eu não saberia apontar a diferença entre esta e uma Nova Pentecostal do Amor Eterno, uma Adventista do 18º Dia, uma Sarah nossa Terra ou um Templo Sinistro do Santo Escambáu a Quatro. É um daqueles recintos com cheiro de reforma, em que pessoas com vozes esganiçadas se reúnem sábado de manhã para cantar “Hosana nas Alturas”. Conheço uma menina chamada Rosana que vive nas alturas – e imaginar que a canção é inspirada nela me faz um sujeito mais tolerante. Mas não foi sobre isso que vim escrever.

Talvez demore um pouco para chegar ao ponto, hoje; e espero paciência de quem estiver lendo. Pare aqui, leitor cibernético, se não crê que eventualmente chegarei aonde quero te levar. Você continuou, acreditou em mim - autoridade moral é isso. Outro exemplo: minha irmã começa a namorar um camarada. É um pouco mais velho que ela, posa de artista, todas as criaturas fêmeas de menos de 20 anos consideram o rapaz um exemplar de pura Atraência. Somos apresentados – eu o pego pela mão e o trago comigo até uma goiabeira estacionada na frente do bar, tiro uma Surpresa das calças e me ponho a mijar, enquanto discurso sobre a magnanimidade do Jequitibá-Rei. Meu filho – chamo-o de “meu filho” – o Jequitibá-Rei é como o Amor. Ele precisa ser regado para continuar crescendo forte e teso; caso contrário, definha, morre. A-p-o-d-r-e-c-e. Sacudo minha surpresa muito mais que o necessário, antes de devolvê-la para dentro das calças. Jamais menciono a supérflua diferença entre uma goiabeira mijada e um Jequitibá-Rei aguado. Isso é autoridade moral.

Mas eu contava (paciência, paciência...) que sobre meu cursinho funciona uma Casa de Deus. Nunca vi bem as caras dos fiéis – primeiro por recear descobrir serem todos clones de um mesmo anão anencéfalo, depois porque tenho medo de revelar meu Estado de Ressaca e sofrer uma punição divina ou um linchamento popular, o que vier primeiro. Seja como for, há coisa de dois sábados, cheguei um pouco mais cedo e encontrei uma pequena aglomeração no andar térreo. O Pastor, rodeado de gente, parecia proferir um sermão. Fiquei intrigado – normalmente, o pudor religioso restringe a peroração aos recintos Sagrados-Com-Cheiro-De-Reforma. Mas lá estavam pastor e rebanho, e eu, curioso, ressaqueado, imbuído da curiosidade antropológica que só as pessoas que não têm nada mais a perder possuem, estiquei a orelha. Que diabos: na pior das hipóteses, estaria presenciando uma versão atualizada e revista do sermão da Montanha. Nada a ver com o sermão do Toni Montana, segundo quem o traficante não deve recorrer ao próprio estoque (“thou shall not get high on your own suply”).

Paciência, paciência. Aproximei-me; o pastor ergueu as mãos para o céu quando alcancei a soleira do prédio. O sol cegou meus olhos (qual João de Santo Cristo sem a Winchester 22), eu já esperava resignado o comando de “ataquem o ateu!”; mas, em vez de deixar tombar sobre mim o Punho Bento, o Pastor alcançou a lâmpada, desatarrachou-a do soquete, e proferiu, solene: “precisamos de lâmpadas de 100 watts!” Todos os fiéis repercutiram o Verbo, como se fosse a solução para o estado de degeneração atual do mundo. 100 watts, para enxergar melhor. 100 watts, porque o Pastor é meio coroa e, acometido pela presbiopia e pela ressaca, já não consegue ler direito a letra de “Rosana nas Alturas”. Mas para os fiéis, era A Palavra. Isso é autoridade moral.

Pudera eu manter alguma dignidade extra-terrena de forma tão incondicional. Fato é que, buscando demonstrar minha agilidade felina apesar da embriaguez, derrapei numa colina e caí de quatro, bem diante do namoradinho novo daminha irmã. Senti minha Surpresa se retrair, dentro das minhas calças, decepcionada com o próprio corpo que a mantém. Vi minha irmã envergonhada e seu namoradinho vitorioso, e pensei na lâmpada de 100 watts que ilumina o Mundo.

E eis que, prostrado, caído, bêbado e derrotado, achei no chão uma cédula de 2 reais. Entendi como o preço que a Divina Ironia atribuía à minha autoridade moral. Prometi doar para a Evangelista do Fígado de Cristo.