Wednesday, December 19, 2007

Désolé

(Após recente contato com especialista australiano em Désolés, e para estimular futuras investigações vernaculares, seguem observações preliminares registradas em Março de 2006. Alons enfants!)

"Désolé" quer dizer "desolado", em francês. A gente aprende que, na linguagem cotidiana, se usa também e principalmente com o sentido de "desculpa", ou antes, "sinto muito". Pode ser. Mas restringir a isso o significado da palavra é a maior injustiça lingüística que se pode cometer. No meu curso de francês, o Désolé ganharia um capítulo especial e pelo menos algumas horas de análise detalhada. O Désolé é a França.

Tal é a incidência do termo que, para que se faça idéia, os brasileiros de Strasbourg (sempre eles) inventaram uma expressão: "tomar um Désolé". Mais fácil explicar simulando uma situação. Todos já vivemos análogas.

Brasileiro 1: "Você conseguiu fazer sua carteirinha da biblioteca?"

Brasileiro 2: "Não, tomei um Désolé porque esqueci de levar um dos 46 documentos requeridos".

É fácil imaginar o Brasileiro 2 empilhando 45 folhas carimbadas e assinadas no balcão e a atendente francesa, impassível, dizendo "Désolée, mas falta o quadragésimo sexto documento, não há nada que eu possa fazer para te ajudar". O pobre brazuca atordoado pode ter feito maravilhas com o limitado vocabulário francófono de que dispõe para tentar trazer a atendente à razão e fazê-la perceber que não faz sentido exigir um comprovante de vacinação traduzido e autenticado para permitir acesso à biblioteca. Pode mesmo chegar a argumentar que, se preciso for, só entra no edifício usando máscara. Promete não contagiar ninguém. Mas a atendente não hesita, não pisca, não franze o cenho em sinal de compaixão ou compreensão. O Désolé é irreversível.

Nem bem inteiramente acostumados à abundante modalidade oral, os brasileiros descobriram que os Désolés existem em meios e estilos diversos e igualmente perniciosos. Désolés eletrônicos, por exemplo, começaram a chover nas caixas de e-mail à medida que eles enviavam os currículos em procura de estágio. Leandro, meu co-locatário e autoridade em Désolés coorporativos, chegou ao cúmulo de tomar um Désolé em alemão, antes de conseguir um estágio em Paris.

Graças à experiência dos aguerridos brésiliens, é hoje possível esboçar a sociologia do Désolé no mundo empresarial. A forma e estilo empregados revelam o caráter dos possíveis empregadores. Algumas empresas são adeptas do Désolé objetivo: "Désolé, vaga preenchida". Outras preferem caprichar um Désolé mais cruel: "Désolé, mas suas qualificações não preenchem nossos requisitos (subentende-se "jamais preencherão")". E há executivos que nem se dão ao trabalho de responder aos pedidos de emprego. Essa modalidade é considerada por unanimidade a pior de todas: o Désolé tácito. O Désolé não-dito paira no ar como um sorriso sardônico, e todos podemos senti-lo.

Com o fecundo intercâmbio cultural entre os estrangeiros em Strasbourg, não se tardou a escutar por aí a versão anglófona do termo de autoria brasileira. Americanos, australianos e ingleses passaram a usar "to get a Désolé". Mas a contribuição anglo-saxã ao desenvolvimento do vocábulo só foi constatada a partir do batismo de uma forma peculiar de Désolé: o "Unrequested Désolé". Meninas francesas freqüentemente dizem, ao se despedir, que gostariam de te encontrar de novo. Você responde casualmente que talvez na semana que vem vá rolar uma festa. E as gaulesinhas lamentam, desoladas, mas estão muito ocupadas na semana que vem. Ou seja, você não se viu numa situação passível de Désolé, achou que estava a salvo. Mas ele veio, mesmo assim.

Até que um dia em a gente fala sem querer, então começa a usar e descobre o poder que uma palavrinha tão simples contém. E descobre que Désolé, em francês, equivale a um "estou de altas" social, a uma imunidade diplomática no complexo país das relações humanas, a uma boa injeção de óleo na máquina repleta de atritos dos contatos entre as pessoas. E percebemos que as coisas seriam muito mais fáceis em outras culturas se todos tivéssemos nosso Désolé.

Tuesday, December 11, 2007

Cassandra podia ser uma ninfeta cretina, mas tinha razão

Cassandra tinha tudo. Era princesa de Tróia – a inconquistável, insitiável, indestrutível cidade mais poderosa do mundo – filha do glorioso Príamo, irmã do heróico Heitor e do belo Páris. Tão inacreditavelmente bela que até Apolo, deus pop e de notório sex-appeal, apaixonou-se por ela.

Adolescente frívola, Cassandra saltitava matreira pelos campos idílicos, inebriada pelo orvalho matinal e pela birita da noite anterior que ainda circulava no sangue, quando lhe apareceu o divino pretendente. Apolo fez a corte: deve ter dançado, declamado, trocado a lâmpada do Sol e realizado outras proezas igualmente inócuas de modo que, frustrado, resolveu apelar. Ofereceu à ninfeta o dom da profecia em troca de seu amor. Cassandra aceitou.

Inspirada pela malícia feminina que já naquele tempo era intrínseca em gregas e troianas, Cassandra, depois de receber a dádiva e tornar-se profetiza, não cumpriu sua parte no trato. “Mas Apolo, eu te dei meu amor… Só que amor de amigo, entende?”, ela deve ter tentado argumentar. O deus – que não era otário nem cristão, para aceitar essa caridade emocional tão popular entre as descendentes de Cassandra no século XXI – indignou-se e concebeu um castigo à altura de sua ira. A inconseqüente manteria o dom de ver o futuro, mas ninguém acreditaria nela, jamais. E que deixasse de ser escrota e aprendesse a não fazer joguinhos com os deuses, porra.

Cassandra passou a ver os cadáveres de seus compatriotas empilharem-se em seus sonhos, e a sentir na própria “câmara de vênus” o calor das labaredas que logo consumiriam sua amada cidade. Tentou alertar as autoridades, que sutilmente lhe sugeriram que largasse a papoula, o hidromel, ou o que quer que fosse que a deixasse naquela lombra. Nem as pessoas próximas nem as distantes, nem os cultos nem os crédulos, ninguém acreditou no que a jovem previa: a queda próxima da inviolável Tróia.

Nem quando eclodiu a guerra recebeu Cassandra – agora apechada de doida – o devido mérito. Tampouco deram-lhe ouvidos quando implorou que destruíssem aquele enorme cavalo de madeira deixado de presente na porta da cidade pelos inimigos derrotados. “Há inúmeros guerreiros gregos dentro dele!”, teria gritado histericamente a princesa, para alegria dos fofoqueiros palacianos, que devem ter feito todo o tipo de inferências e sacanagens a respeito das necessidades fisiológicas e alucinações libidinosas da menina.

Mas havia guerreiros dentro do cavalo; Tróia caiu, Cassandra terminou estuprada e levada como concumbina para Agamêmnon. De volta da guerra, foram ambos mortos por Clitemnestra, esposa ciumenta do líder grego.

Mas o grande lance da história não é a atualidade do comportamento acintosamente feminino de Cassandra nem a vingança de Apolo (da qual teriam gostado de usufruir tantos machos contemporâneos colocados em situação análoga de coito frustrado). O mito de Cassandra vale por escancarar a alienação das pessoas diante das forças que provocam sua ruína. Troianos ou não, tendemos sempre a negar os mais óbvios sinais de “merda à vista”. O mito serve também serve para ilustrar a angústia sentida pelos que percebem a tragédia; mas, desacreditados, são impotentes para a evitar (condição confundida com o pessimismo e chamada de “síndrome de Cassandra”). O dilema é clássico: se os videntes agourentos forem ouvidos, perdem a credibilidade, pois os males que prevêem são evitados e suas profecias não se realizam. Se os ignoramos, as calamidades se confirmam – mas então era melhor que nem tivessem falado nada.

Há algum tempo venho escutando atentamente a Cassandrinha dentro de mim. O problema é que, nos últimos tempos, ela não cala a boca.