Friday, August 31, 2007

Preta, Preta, Pretinha

Quem diz que gosta de escrever e nunca desovou um quimo de adjetivos embolados em sentimentos patéticos está se enganando. De um jeito ou de outro.

***

A primeira coisa que aprendemos sobre a Preta foi que ela não era preta. Para moleques de cinco, seis anos de idade, isso está entre as coisas mais engraçadas do mundo. Quase ali tão engraçado quanto abaixar as calças de um colega em público, ou ouvir a 11ª vez em que o Chavez repete “foi sem querer querendo” no mesmo episódio. Por isso, nos primeiros tempos, ainda atordoados com o fato de ser branca, dizíamos “Preta!”, e ríamos; cantávamos “Preta, Preta, Pretinha” – e ríamos. E rimos ainda mais quando descobrimos que ela vinha de uma cidade chamada – hahahahahahaha – “Mangorreira”, nas profundezas de Minas Gerais.

Nossos pais eram jovens e mal tinham terminado a faculdade. Eram autênticas vítimas daquele vendaval de fertilidade que assolou os anos 80 – tempos em que aparelhos celulares nos bolsos das calças ainda não haviam comprometido a qualidade dos gametas. Ou talvez a procriação irresponsável múltipla fosse um modismo, de gosto questionável como sombra de olho verde, rabo de cavalo lateral ou Flashdance. Fato é que a vida não chegava a ser dura, mas também não era farta – e talvez por isso não tenhamos percebido a limitação culinária de Preta, de início. Almoçávamos bife, arroz e feijão todos os dias, e alternávamos, no jantar, entre pão-de-forma com queijo e pão de sal com salsicha. Percebíamos que ela tinha uma maneira peculiar de preparar a carne – marretando-a de forma terapêutica, como que esperando a rendição das fatias de bife, e depois as passando a óleo fervente com os próprios dedos e sem o intermédio de um garfo que fosse. Aquilo era para nós peculiaridade, não imperícia.

Ademais, ela era uma adulta e, na ausência constante dos nossos jovens pais urbanos, a autoridade. Não que tivesse tomado gosto pela coisa e se tornado déspota. Preta conduzia seu poder como um fardo, e se eventualmente aplicava alguma disciplina era porque nós implorávamos por isso. Ainda que fosse investida de legitimidade para empregar a coerção física, só me lembro de uma vez em que chegou às vias de fato: o Guigo, abusando das enormes palavras que aprendeu ainda tão pequeno, conseguiu provocar a fagulha. Percebendo o perigo iminente nos olhos injetados de raiva, o moleque correu na direção de uma barricada de sofás que já tínhamos construído para guerras diversas, mas ainda assim a chinela Havaiana atirada pela Preta fez uma curva perseguidora e atingiu-o já na descendente.

Episódios assim eram a exceção. Com a autoridade que tinha ela nos ensinou, antes, a cumplicidade. Estávamos terminantemente proibidos de nos molhar e de atravessar ruas enquanto brincássemos fora – tudo o mais era permitido. Exatamente por isso, às vezes saíamos só para passar correndo na frente dos carros. E, uma vez, não resistimos ao apelo quase sensual de uma bateria de aspersores ligados, jorrando fios cristalinos de água que caíam em forma de arco-íris por todo o gramado. Guigo e eu nos olhamos, graves. Sabíamos que traria conseqüências, mas não era uma opção. Brasília é uma cidade seca, e cada gota d’água guarda um chamado.

Voltamos pingando e implorando – não conta nada pro papai e pra mamãe, por favor. “Vou pensar”, disse ela tão preocupada quanto a gente, “mas vão já tomar um banho quente e se secar”. Ao termo do jantar mais tenso de nossas então jovens vidas, percebêramos pelo humor dos progenitores que não fôramos delatados. Agradecemos no dia seguinte, e ela deu o preço: “dessa vez fica assim, mas se vocês fizerem de novo eu conto tudo!”

Sem dúvida, Preta preferia ficar em seu quarto pintando as unhas dos pés, ou apostando mais da metade do salário em quantas loterias fossem legalizadas, ou fazendo dindim pra vender pra molecada da quadra. Acho que gostou quando notou que tínhamos crescido e agora éramos adolescentes. Nós, por outro lado, começamos a notar uma série de particularidades antes insuspeitas. Quando descobrimos o sexo e tout ce qui va avec, percebemos que, a não ser por eventuais tranças nos cabelos revoltos e o esmalte nas unhas dos pés, Preta era absolutamente assexuada. Quando questionamos o sistema, nos demos conta de que tínhamos em nossa própria casa uma evangélica de estereótipo, do tipo que doa mais que o dízimo e não vai à banca sem falar com o pastor. Como tudo o mais que significava vestígio da infância, nos afastamos dela.

Foi quando nos surpreendemos brutalmente. Nossa mãe se mudou para os Estados Unidos, e consciente da inadaptabilidade técnica de Preta em um mundo que vê currículo mas não vê coração, a convidou para ir junto.

Àquela época, ela já tinha uma reputação, entre nossos amigos, de falar um idioma semelhante ao português, mas ininteligível para não iniciados. Nos perguntávamos como faria para se virar em inglês – na verdade, apostávamos em quanto tempo ela estaria de volta. Mas ela não se rendeu. Nos admirávamos das histórias que chegavam pelo telefone.

A primeira vez que a Preta se aventurou sozinha em solo gringo foi para ir à loteria. Levou consigo o número de telefone de casa anotado em uma tira de papel e, sem dizer palavra, o entregou ao caixa. Mamãe atendeu surpresa e, compreendendo a situação, explicou ao homem do que se tratava. Por sorte, ele era mexicano, evangélico, e foi assim que Preta estabeleceu um círculo de relações americanas antes de qualquer outro na família. E, de quebra, aprendeu a falar espanhol.

Ao fim da temporada americana, nós já tínhamos crescido. Preta voltou à rotina brasiliense e às nossas vidas. Agora, o carinho que tinha por nós se imiscuía de uma admiração velada pelos adultos que nos tornávamos. “Acumulou de novo, hein, Preta!”, eu dizia ao café da manhã, e ela trazia as dezenas sorteadas pela Mega-Sena anotadas num canto de jornal qualquer. “O Dagoberto passou por aí?”, perguntava ela, referindo-se ao “fantasma” que usava dúzias de copos e os espalhava pela casa, sem jamais fazer o favor de os levar de volta à cozinha.

No início do ano, Preta teve uma convulsão. Mamãe viajava, e Guigo, Paula e eu, assustados, chamamos uma ambulância. Ao longo da noite, ela teve outras quatro crises. Fiquei até as 2h da madrugada no hospital, e voltei pra casa quando soube que ela seria internada. No dia seguinte voltei à ala de emergência, e a notícia que recebi era ambígua: ela se recuperava, mas não havia diagnóstico.

Preta se submeteu a séries de exames nos meses seguintes. Fez duas tomografias, várias radiografias, urina, sangue, fezes, tudo. Como ainda não havia diagnóstico, levantou-se a hipótese de que ela fosse epilética. Há um mês e meio, ela teve outra crise aguda de dor de cabeça, acompanhada desta vez de tontura e ânsia de vômito. Voltou ao hospital. Naquela semana, eu estava inteiramente absorvido pelo trabalho, e só soube no dia seguinte. Fui procurá-la e a encontrei sobre um colchão, no corredor do HRAN, com uma agulha no braço e a cabeça encoberta. Só pude reconhecê-la pelo esmalte descascado nas unhas dos pés. Ela se queixou de dor, não suportava a luz, e aguardava tratamento nos dias seguintes.

Quase um mês se passou até que ela fosse transferida do corredor para a ala de internados. “Aqui é melhor”, dizia ela quando a visitava, “pelo menos fica perto do banheiro”. A terceira tomografia revelou um tumor maior que uma laranja.

Ela foi transferida para o Hospital de Base e operada de urgência, disseram que se a pressão intracraniana não fosse aliviada ela teria morrido em dois dias. Mas que, ainda assim, não deveríamos ter esperança. Com químio e radioterapia, não deve sobreviver ao ano.

Fui visitá-la ontem e a encontrei com metade da cabeça raspada, metade do corpo paralisado, um olhar perdido. Perguntei se me reconhecia, ela disse meu nome. Ainda no HRAN, me apresentara como “filho de consideração” à acompanhante de outra paciente. Dessa vez, olhou vagamente na minha direção e disse “toma cuidado, ta?” Balbuciou alguns sons ininteligíveis e pareceu oscilar entre o sono e a vigília. A enfermeira passou dizendo que o horário de visitas terminara. Eu disse a Preta que ficasse tranqüila, sempre. Tranqüila. Saí do hospital com a sensação de que nunca mais a verei. E eu nem consegui cantar Preta, Preta, Pretinha de novo, nem dizer, droga, “eu te amo e brigado por tudo”.

Wednesday, August 15, 2007

Me deseas?

- Me deseas?


- Si. Mucho.


Buenos Aires, 1h47. Plaza San Martín, esquina da calle Florida, só os táxis navegam pelo asfalto negro, irrompendo pelos reflexos nas poças d´água e pelas salvas de sons dos bares próximos.

- Me deseas?

- Si. Mucho. Pero no tiengo plata.

- Entonces?

- Entonces me voy, buenas noches.

- Ni 100 pesos?

- No.

- Ni 50?

- Ahn ahn.

- Entonces que haces aca?

- No hablo español.

- Português?

- Pode ser...

- O que você ta fazendo aqui, se não quer uns carinhos?

- Tô esperando parar de chover.

- Não tá chovendo.

- Você fala português muito bem.

- Sou chilena.

- Ah.

- Não tá chovendo.

- Não tinha percebido.

- Você não devia ficar parado, aí...

- Não tinha nada melhor pra fazer. Vou indo.

- Espera. Quer um cigarro?

- Quero. Gracias. Por que você faz isso?

- Isso de vender meus carinhos?

- É.

- Porque posso. Sou jovem e tem gente querendo pagar pelos meus carinhos.

- Pára de chamar isso de “meus carinhos”...

- Sou chilena.

- Entonces?

- Vale. Pero esto es lo que yo...

- Você é bonita. Não acha que está desperdiçando juventude, assim?

- Claro que não, jajaja! A juventude não é um valor, só um momento na vida. Não dá pra desperdiçar juventude, só dá pra viver ou não viver.

- Pode ser...

- Te lo juro!

- Yo te creo!

- Acabou o seu cigarro.

- É, brigado. Meu hotel é bem ali, vou indo.

- Espera! Não vai agora, tá chovendo...

Wednesday, August 8, 2007

Tempête mental

Ouvi dizer que um nerd calculou quanta energia seria economizada no mundo se o Google funcionasse com a tela preta. Já calcularam a velocidade necessária para colocar uma caneta em distância orbital a partir de um ponto qualquer na linha do equador. Enquanto isso, David Beckham tem curtido as festinhas de seus melhores amigos – Tom Cruise e Will Smith – e há meses que Gisele Bündschen, muito velha para modelar, só comenta os oito quilos a mais que vem apresentando desde que largou o ganha pão. Nem perguntam mais sobre o episódio das peles dos guachinins. Dodô foi absolvido de ter tomado pancas antes do jogo do Botafogo (aparentemente os inibidores de apetite não melhoram a performance); e, por falar em jogo, os alemães estão instalando videogames nos banheiros públicos. Se estudar é ser capaz de triar informações relevantes, já começo em desvantagem.

Dia 1

Logo no primeiro dia cometi um erro imperdoável: cheguei 7 minutos atrasado. Atraí todos os olhares e destruí a tensa aura de conhecimento em que estavam imersos, como se estilhaçasse o aquário precário em que se enfileiravam, aos pares, esbugalhados peixinhos redondos. Os mais próximos da porta chispavam como se soletrassem a acusação: “isso é descaso!” E o descaso é intolerável, diziam-me os semblantes inquisidores por que passei primeiro, à procura de um lugar vago na sala de aula quase lotada. É desperdiçar o tempo em que se poderia aprender todo o conteúdo da questão mais difícil da prova; é negligenciar a densidade dos macetes que o professor pago em barris de petróleo consegue socar em poucos minutos. É rasgar o dinheiro que você, em tese, investiu para recuperar depois, com o primeiro salário depositado em conta pelo governo.

Venci as carteiras mais ao fundo e senti o ar escassear à medida que me aproximava do quadro negro. Ainda não sabia disso, mas penetrava num dos espaços sociais mais carregados do mundo contemporâneo. O clima na Primeira Fileira dos cursinhos para concursos públicos é comparável apenas ao das reuniões de cúpula da Al Qaeda, dos míticos torneios de pôquer entre líderes de facção da máfia russa e do banheiro feminino do Desfrut Bar. Naquela área, meu atraso não era interpretado apenas como descaso e sintoma de um caráter degenerado – era sabotagem. Eu, concorrente tinhoso, teria deliberadamente interrompido uma explicação, desviado as atenções, rasgado o dinheiro que aquelas pessoas investiram para recuperar depois, com o primeiro salário mamado na ainda distante teta pública.

Toda a hostilidade não destruiu, naquele primeiro dia, minha excitação juvenil, aquela ansiedade de primeiro dia de aula depois das férias. Faria novos melhores amigos? Conheceria algum sujeito hilário, cujos aforismos e tiradas se tornariam legendários para meus amigos da iniciativa privada? Descobriria finalmente a linda jovem ninfomaníaca dotada de cérebro e sensibilidade por que vinha procurando todos aqueles anos? Olhei em volta, ávido por um sinal de reconhecimento que fosse, logo que pude me sentar. Só então percebi o silêncio. O professor, maestro daquela orquestra macabra, tinha esperado meu périplo para reiniciar a aula. Alguém tossiu. No código não-escrito dos cursinhos, a tosse é a última advertência antes do ostracismo. Espero aprender a dançar antes que me pisem no pé.