Wednesday, December 19, 2007

Désolé

(Após recente contato com especialista australiano em Désolés, e para estimular futuras investigações vernaculares, seguem observações preliminares registradas em Março de 2006. Alons enfants!)

"Désolé" quer dizer "desolado", em francês. A gente aprende que, na linguagem cotidiana, se usa também e principalmente com o sentido de "desculpa", ou antes, "sinto muito". Pode ser. Mas restringir a isso o significado da palavra é a maior injustiça lingüística que se pode cometer. No meu curso de francês, o Désolé ganharia um capítulo especial e pelo menos algumas horas de análise detalhada. O Désolé é a França.

Tal é a incidência do termo que, para que se faça idéia, os brasileiros de Strasbourg (sempre eles) inventaram uma expressão: "tomar um Désolé". Mais fácil explicar simulando uma situação. Todos já vivemos análogas.

Brasileiro 1: "Você conseguiu fazer sua carteirinha da biblioteca?"

Brasileiro 2: "Não, tomei um Désolé porque esqueci de levar um dos 46 documentos requeridos".

É fácil imaginar o Brasileiro 2 empilhando 45 folhas carimbadas e assinadas no balcão e a atendente francesa, impassível, dizendo "Désolée, mas falta o quadragésimo sexto documento, não há nada que eu possa fazer para te ajudar". O pobre brazuca atordoado pode ter feito maravilhas com o limitado vocabulário francófono de que dispõe para tentar trazer a atendente à razão e fazê-la perceber que não faz sentido exigir um comprovante de vacinação traduzido e autenticado para permitir acesso à biblioteca. Pode mesmo chegar a argumentar que, se preciso for, só entra no edifício usando máscara. Promete não contagiar ninguém. Mas a atendente não hesita, não pisca, não franze o cenho em sinal de compaixão ou compreensão. O Désolé é irreversível.

Nem bem inteiramente acostumados à abundante modalidade oral, os brasileiros descobriram que os Désolés existem em meios e estilos diversos e igualmente perniciosos. Désolés eletrônicos, por exemplo, começaram a chover nas caixas de e-mail à medida que eles enviavam os currículos em procura de estágio. Leandro, meu co-locatário e autoridade em Désolés coorporativos, chegou ao cúmulo de tomar um Désolé em alemão, antes de conseguir um estágio em Paris.

Graças à experiência dos aguerridos brésiliens, é hoje possível esboçar a sociologia do Désolé no mundo empresarial. A forma e estilo empregados revelam o caráter dos possíveis empregadores. Algumas empresas são adeptas do Désolé objetivo: "Désolé, vaga preenchida". Outras preferem caprichar um Désolé mais cruel: "Désolé, mas suas qualificações não preenchem nossos requisitos (subentende-se "jamais preencherão")". E há executivos que nem se dão ao trabalho de responder aos pedidos de emprego. Essa modalidade é considerada por unanimidade a pior de todas: o Désolé tácito. O Désolé não-dito paira no ar como um sorriso sardônico, e todos podemos senti-lo.

Com o fecundo intercâmbio cultural entre os estrangeiros em Strasbourg, não se tardou a escutar por aí a versão anglófona do termo de autoria brasileira. Americanos, australianos e ingleses passaram a usar "to get a Désolé". Mas a contribuição anglo-saxã ao desenvolvimento do vocábulo só foi constatada a partir do batismo de uma forma peculiar de Désolé: o "Unrequested Désolé". Meninas francesas freqüentemente dizem, ao se despedir, que gostariam de te encontrar de novo. Você responde casualmente que talvez na semana que vem vá rolar uma festa. E as gaulesinhas lamentam, desoladas, mas estão muito ocupadas na semana que vem. Ou seja, você não se viu numa situação passível de Désolé, achou que estava a salvo. Mas ele veio, mesmo assim.

Até que um dia em a gente fala sem querer, então começa a usar e descobre o poder que uma palavrinha tão simples contém. E descobre que Désolé, em francês, equivale a um "estou de altas" social, a uma imunidade diplomática no complexo país das relações humanas, a uma boa injeção de óleo na máquina repleta de atritos dos contatos entre as pessoas. E percebemos que as coisas seriam muito mais fáceis em outras culturas se todos tivéssemos nosso Désolé.

Tuesday, December 11, 2007

Cassandra podia ser uma ninfeta cretina, mas tinha razão

Cassandra tinha tudo. Era princesa de Tróia – a inconquistável, insitiável, indestrutível cidade mais poderosa do mundo – filha do glorioso Príamo, irmã do heróico Heitor e do belo Páris. Tão inacreditavelmente bela que até Apolo, deus pop e de notório sex-appeal, apaixonou-se por ela.

Adolescente frívola, Cassandra saltitava matreira pelos campos idílicos, inebriada pelo orvalho matinal e pela birita da noite anterior que ainda circulava no sangue, quando lhe apareceu o divino pretendente. Apolo fez a corte: deve ter dançado, declamado, trocado a lâmpada do Sol e realizado outras proezas igualmente inócuas de modo que, frustrado, resolveu apelar. Ofereceu à ninfeta o dom da profecia em troca de seu amor. Cassandra aceitou.

Inspirada pela malícia feminina que já naquele tempo era intrínseca em gregas e troianas, Cassandra, depois de receber a dádiva e tornar-se profetiza, não cumpriu sua parte no trato. “Mas Apolo, eu te dei meu amor… Só que amor de amigo, entende?”, ela deve ter tentado argumentar. O deus – que não era otário nem cristão, para aceitar essa caridade emocional tão popular entre as descendentes de Cassandra no século XXI – indignou-se e concebeu um castigo à altura de sua ira. A inconseqüente manteria o dom de ver o futuro, mas ninguém acreditaria nela, jamais. E que deixasse de ser escrota e aprendesse a não fazer joguinhos com os deuses, porra.

Cassandra passou a ver os cadáveres de seus compatriotas empilharem-se em seus sonhos, e a sentir na própria “câmara de vênus” o calor das labaredas que logo consumiriam sua amada cidade. Tentou alertar as autoridades, que sutilmente lhe sugeriram que largasse a papoula, o hidromel, ou o que quer que fosse que a deixasse naquela lombra. Nem as pessoas próximas nem as distantes, nem os cultos nem os crédulos, ninguém acreditou no que a jovem previa: a queda próxima da inviolável Tróia.

Nem quando eclodiu a guerra recebeu Cassandra – agora apechada de doida – o devido mérito. Tampouco deram-lhe ouvidos quando implorou que destruíssem aquele enorme cavalo de madeira deixado de presente na porta da cidade pelos inimigos derrotados. “Há inúmeros guerreiros gregos dentro dele!”, teria gritado histericamente a princesa, para alegria dos fofoqueiros palacianos, que devem ter feito todo o tipo de inferências e sacanagens a respeito das necessidades fisiológicas e alucinações libidinosas da menina.

Mas havia guerreiros dentro do cavalo; Tróia caiu, Cassandra terminou estuprada e levada como concumbina para Agamêmnon. De volta da guerra, foram ambos mortos por Clitemnestra, esposa ciumenta do líder grego.

Mas o grande lance da história não é a atualidade do comportamento acintosamente feminino de Cassandra nem a vingança de Apolo (da qual teriam gostado de usufruir tantos machos contemporâneos colocados em situação análoga de coito frustrado). O mito de Cassandra vale por escancarar a alienação das pessoas diante das forças que provocam sua ruína. Troianos ou não, tendemos sempre a negar os mais óbvios sinais de “merda à vista”. O mito serve também serve para ilustrar a angústia sentida pelos que percebem a tragédia; mas, desacreditados, são impotentes para a evitar (condição confundida com o pessimismo e chamada de “síndrome de Cassandra”). O dilema é clássico: se os videntes agourentos forem ouvidos, perdem a credibilidade, pois os males que prevêem são evitados e suas profecias não se realizam. Se os ignoramos, as calamidades se confirmam – mas então era melhor que nem tivessem falado nada.

Há algum tempo venho escutando atentamente a Cassandrinha dentro de mim. O problema é que, nos últimos tempos, ela não cala a boca.

Monday, November 26, 2007

Revolução astronóica

Astrologia de boteco é uma ciência tão inexata quanto a capacidade de dicção dos bêbados que a praticam. Mas, ainda assim, como toda picaretagem milenar, pode ocupar horas de pensamento infrutífero ou pelo menos render boas conversas.

Uma amiga – taróloga, numeróloga, freqüentadora esporádica do terreiro do Pai Tião e católica de formação ecumênica – tentou me convencer outro dia quanto à cientificidade da astrologia. Despejando mais cerveja no meu copo (talvez tentando quebrar com álcool o meu ceticismo), ela argumentou que os efeitos dos astros na vida das pessoas eram constatáveis, por exemplo, pela influência das fases da Lua nas marés. O corpo humano, formado em 70% por água, também sofreria influências semelhantes. Respondi que se nós sentíssemos, de forma comparável, a força gravitacional de uma pedra enorme que gira a pouca distância do significativo volume de água que são os oceanos, precisaríamos nos amarrar, nas noites de lua cheia, para não sermos tragados para o espaço. Ligeiramente ofendida ela mudou de assunto, e passamos a debater as representações perniciosas da carta do Enforcado nos baralhos medievais.

O que sempre me incomodou é a possibilidade aventada pelo zodíaco de se classificar toda a humanidade em 12 categorias gerais. Sei que a astrologia séria não é simples assim, que existem os diferenciais dos ascendentes, descendentes, efervescentes, condescendentes e etcétera – mas, ainda assim, são os signos que dão a tônica das interpretações astrais de personalidade.

Se os astrólogos estão certos, me espanta que ainda não se tenham tomado certas providências. Por que não promover um estudo associando os feriados nacionais à índole dos povos em cada país? Dessa forma, para direcionar uma nação em uma determinada direção psicossocial, bastaria reorganizar o calendário.

Vou tentar explicar melhor: no Brasil, o grande feriado sexual é o carnaval, em fevereiro. As cópulas carnavalescas produzem um grande número de nascimentos em novembro – período dominado pelo signo de Escorpião. Segundo o perfil astrológico da Folha de São Paulo, Escorpião “é um signo magnético, de força animal, ligado em sexo, dinheiro e poder – os três grandes temas que movimentam a humanidade desde sempre. Nesses três campos, dá lições a todos (...) Chega a ser autoritário nesse seu esporte preferido de alcançar o poder”. Sem dúvida, isso explica muita coisa sobre o brasileiro.

Se transferíssemos o carnaval para o mês seguinte, ou para abril, teríamos mais capricornianos, no Brasil. Ainda de acordo com a Folha, a tarefa desse signo é “melhorar as estruturas existentes. Capricórnio resiste às frustrações, se submete às condições inóspitas para realizar um plano ambicioso de longo prazo e deseja ter o reconhecimento social de seus méritos. Seu jeito leal e determinado, seu temperamento confiável, sério e responsável, mostra segurança no que faz. Observador, Capricórnio despreza a bajulação e o servilismo e não cede ao seu orgulho ferido”.

Se desse certo, a veracidade da astrologia estaria comprovada em definitivo: seria a revolução. Passaria a ser proibido por lei fazer filhos sem antes determinar o mapa astral do guri. Medidas preventivas seriam adotadas para reduzir os atritos sociais ao mínimo inevitável, como por exemplo a de colocar Leoninos e Taurinos para estudar em escolas separadas e evitar assim os conflitos de personalidade entre esses signos ególatras.

E eu poderia finalmente admitir que fico meio nervoso quando leio no jornal que meu dia vai ser uma merda.

Tuesday, November 20, 2007

Banzo

Levantou os olhos do café e sorriu por um segundo. Sua felicidade era errática – vinha em ondas com um formigamento de excitação por não ter feito absolutamente nada no dia, apesar dos compromissos. O poder advindo da decisão pelo ócio inundava-o. Olhava o interior do restaurante como se lambesse as paredes de madeira, o teto espelhado, o carpete vermelho-escuro: explorar os limites do mundo sensorial fora sua escolha para o dia. Desta vez, não deixaria assomar aquela culpa por estar à toa. Não deixaria ganhar forma o pensamento de que o tempo é medido por coisas que acontecem e nos termos das mulheres e dos homens que fazem as coisas acontecerem. Às vezes, queria ser como essas pessoas. Então lembrava que precisava começar de algum lugar e preferia não pensar nisso. Não pensar em coisa alguma.

(Senhoras e senhores, levantem-se para saudar o Entretenimento.)

Para se entreter, imaginou um céu estrelado e uma lua crescente, e um velho sentado à soleira com uma viola nas mãos. Apenas ligeiramente tocado pela luz amarela que vaza por uma fresta da porta, ele canta com sua voz de Tempo. Suas palavras escorrem pela noite úmida, pelas ruelas cobertas de areia, e sobem com o vento quente agitando as copas das bananeiras, para se misturarem ao ruído distante do mar e se dissiparem no céu estrelado de lua crescente.

Não exatamente sua idéia de entretenimento.

Mas uma estranha paz que ele só podia alcançar nos lamentos em castelhano da viola do velho.

Wednesday, September 19, 2007

Giffen na acrópole (ou Epicuro nos verdes campos da Irlanda)

Em nossa alegre sociedade capitalista, a noite é dedicada – se o cansaço permite – a fazer o balanço do dia. É também quando quase escorregamos da rotina com pensamentos melancólicos ou provocamos a insônia com idéias impossíveis. Ao menos pra mim era assim. Até que uma aula de economia se enfiou entre as 19h e as 23h e deturpou o sistema.

A praga assolou os verdes campos da Irlanda, entre 1845 e 1849. Famintos, doentes e empobrecidos, os celtas viam suas plantações se perderem e viravam-se como podiam. A moléstia não poupou nem a batata, principal responsável por manter ressoando a gaita de fole nos vales, e de pé o seu tocador. Como previsível, a escassez levou a um aumento no preço do tubérculo – o que, por sua vez, deveria conduzir a uma redução na demanda, conforme reza o corolário econômico. Mas o que aconteceu na Irlanda no meio do século XIX foi o contrário: quanto mais aumentava o preço da batata, mais crescia a procura por ela na mercearia do Finnerty.

Mais tarde, um inglês chamado Giffen explicou o fenômeno. Com seu novo preço, a batata começou a custar uma maior fração do rendimento das famílias irlandesas, que passaram a não poder pagar pela já pouca carne que comiam antes. Sem comprar os sirloins, os irlandeses se viam com um pouco mais de prata para gastar em comida decidiram empregar essa diferença em batatas – o alimento mais calórico e, bloddy hell, ainda o mais barato. Por isso, quanto mais cara a batata, mais procurada ela era. E aos itens que, como o descrito, subvertem o princípio elementar da demanda e oferta na configuração de preços, dá-se hoje o nome de “bens de Giffen”.

Aula de economia. Ouvir sobre bens de Giffen depois das 21h. Pensar em sexo é a alternativa natural. Misturar sexo com Giffen, a loucura iminente e a vontade de não estar ali. Vontade de comer, ou comer, ou viajar, ou viajar, ou qualquer coisa que deixasse bem. O “eu” se comporta como um bem de Giffen. Quanto mais você cede ao “eu”, mais voraz ele fica, mais ele quer. O hedonismo por si só, a busca do prazer como estilo de vida, produz imensos vazios de fome no fundo do “eu”, por mais que a proposta da busca do gozo seja justamente alimentá-lo. Deturpemos, então, Epicuro: sua idéia era que para ser feliz o homem necessitava de Liberdade, Amizade e Tempo para Meditar.

Epicuro lançava o prazer como sentido da vida, mas certamente não conhecia Giffen. Se conhecesse, talvez admitisse que a busca incessante por prazer conduz ao aumento de tolerância a ele – todas doses devem ser cada vez maiores – e finalmente provoca o colapso. Talvez o grego olhasse, então, pelo outro lado e invertesse a proposição: o sentido de tudo não é ter sempre prazer, mas evitar a dor. E, para evitar a dor de barriga causada pela fome pantagruélica do “eu”, só existe um jeito: não precisar de nada. Querer docemente, de forma tranqüila, ainda vai. Mas precisar é escutar a uma fome que não vai passar e escancarar a porta a uma dor que não hesitará em entrar.

Então, que a “Liberdade” de Epicuro seja interpretada assim: Liberdade, inclusive, da necessidade. Mas essa proposta, no limite, deixa o famélico “eu” apagado, translúcido, sem paixão e sem graça. O “eu” quer estímulos para não se diluir num mar de “eus” grande demais e enlouquecer. E, se nunca vai matar a própria fome concentrando-se em si mesmo, deve descobrir os “vocês” e “eles”, aos quais se dedicará inteiramente. Sem precisar. Mas querendo intensamente, desejando loucamente, e não sentindo outra dor que a da perda, e ainda essa transfigurada em melancolia por vir acompanhada de tantas memórias boas de não-arrependimento.

Giffen, Epicuro, aula de economia às 22h e toda a bagagem de um dia me levam à formulação pouco original, mas apaziguadora, de que o “eu” deve buscar as verdades e os prazeres fora de si mesmo.

Sendo a única concessão irrevogável, veja bem, a punheta.

Tuesday, September 4, 2007

Robert Johnson na encruzilhada

Conhecer colegas de cursinho é uma decisão delicada. Fazê-lo significa abrir mão de uma série de preconceitos confortáveis e estereótipos divertidos. É dotar de alma deliciosos alvos de escárnio e receptáculos de gozação – mais ou menos como refutar a piada por compreender que um judeu, um português, um papagaio e o Maradonna jamais estarão juntos no mesmo bote salva-vidas.

Por outro lado, ignorar dia após dia aqueles olhares de neurose profunda e expressões mendicantes de sociabilidade seria me tornar para eles – eu mesmo – o papagaio. Ou pior, o Maradonna. E, na verdade, não ponho minha mão no fogo pela minha pessoa.

Talvez tenha alguma mania bizarra enquanto assisto à aula. Então todos se reunirão na sala de estudos, olhinhos faiscantes de intriga, e sussurrarão quão assustador é o comichão na minha boca, acompanhado pelo som gutural que deixo escapar e que me rendeu o apelido de “Arrotinho”. Talvez eu mastigue o fundo da caneta e faça fios de cuspe quando a tiro da boca, talvez extraia robustas melecas do nariz em momentos de distração demente – talvez, hiper-disperso, eu chegue ao extremo de levá-las aos lábios. Talvez minha pele seja anormalmente oleosa e feda um pouco, talvez eu tenha aquele bafo de desgraça que acomete um a cada três estudantes de cursinho – e talvez, por isso mesmo, eu não perceba meu hábito repulsivo de cheirar a ponta da caneta ao afastá-la dos beiços. Sei lá, não garanto. Ao cultivar o afeto deles, puxo uma cortina de comiseração sobre meus possíveis defeitos.

Trocar boas piadas por novas amizades. Tão politicamente correto, saudável e sem sentido quanto me tornar vegetariano. Sigo por esse caminho e, antes de me dar conta, ganho uma gastrite por esquecer de mandar cartões de natal a primos de terceiro grau.

Imagino Robert Johnson na encruzilhada de algum campo de algodão perdido no Mississipi, a sós com seu violão e seu dilema (e possivelmente um toco de cigarro), tentando decidir se vende ou não a alma ao diabo. Vejo Joe Strummer na sarjeta londrina decidindo se fica ou se vai. Encontro José Raúl Capablanca em Havana decidindo se avança o peão do rei e se arrisca ou se recua o cavalo e força o empate. E percebo todas as pessoas do mundo que já estiveram entre duas escolhas equânimes, e me pergunto – onde está o oráculo? – e percebo que nessa divagação pretensiosa eu talvez esteja comendo melecas.

Ah, se as aulas bastassem contra todas as dúvidas...

Friday, August 31, 2007

Preta, Preta, Pretinha

Quem diz que gosta de escrever e nunca desovou um quimo de adjetivos embolados em sentimentos patéticos está se enganando. De um jeito ou de outro.

***

A primeira coisa que aprendemos sobre a Preta foi que ela não era preta. Para moleques de cinco, seis anos de idade, isso está entre as coisas mais engraçadas do mundo. Quase ali tão engraçado quanto abaixar as calças de um colega em público, ou ouvir a 11ª vez em que o Chavez repete “foi sem querer querendo” no mesmo episódio. Por isso, nos primeiros tempos, ainda atordoados com o fato de ser branca, dizíamos “Preta!”, e ríamos; cantávamos “Preta, Preta, Pretinha” – e ríamos. E rimos ainda mais quando descobrimos que ela vinha de uma cidade chamada – hahahahahahaha – “Mangorreira”, nas profundezas de Minas Gerais.

Nossos pais eram jovens e mal tinham terminado a faculdade. Eram autênticas vítimas daquele vendaval de fertilidade que assolou os anos 80 – tempos em que aparelhos celulares nos bolsos das calças ainda não haviam comprometido a qualidade dos gametas. Ou talvez a procriação irresponsável múltipla fosse um modismo, de gosto questionável como sombra de olho verde, rabo de cavalo lateral ou Flashdance. Fato é que a vida não chegava a ser dura, mas também não era farta – e talvez por isso não tenhamos percebido a limitação culinária de Preta, de início. Almoçávamos bife, arroz e feijão todos os dias, e alternávamos, no jantar, entre pão-de-forma com queijo e pão de sal com salsicha. Percebíamos que ela tinha uma maneira peculiar de preparar a carne – marretando-a de forma terapêutica, como que esperando a rendição das fatias de bife, e depois as passando a óleo fervente com os próprios dedos e sem o intermédio de um garfo que fosse. Aquilo era para nós peculiaridade, não imperícia.

Ademais, ela era uma adulta e, na ausência constante dos nossos jovens pais urbanos, a autoridade. Não que tivesse tomado gosto pela coisa e se tornado déspota. Preta conduzia seu poder como um fardo, e se eventualmente aplicava alguma disciplina era porque nós implorávamos por isso. Ainda que fosse investida de legitimidade para empregar a coerção física, só me lembro de uma vez em que chegou às vias de fato: o Guigo, abusando das enormes palavras que aprendeu ainda tão pequeno, conseguiu provocar a fagulha. Percebendo o perigo iminente nos olhos injetados de raiva, o moleque correu na direção de uma barricada de sofás que já tínhamos construído para guerras diversas, mas ainda assim a chinela Havaiana atirada pela Preta fez uma curva perseguidora e atingiu-o já na descendente.

Episódios assim eram a exceção. Com a autoridade que tinha ela nos ensinou, antes, a cumplicidade. Estávamos terminantemente proibidos de nos molhar e de atravessar ruas enquanto brincássemos fora – tudo o mais era permitido. Exatamente por isso, às vezes saíamos só para passar correndo na frente dos carros. E, uma vez, não resistimos ao apelo quase sensual de uma bateria de aspersores ligados, jorrando fios cristalinos de água que caíam em forma de arco-íris por todo o gramado. Guigo e eu nos olhamos, graves. Sabíamos que traria conseqüências, mas não era uma opção. Brasília é uma cidade seca, e cada gota d’água guarda um chamado.

Voltamos pingando e implorando – não conta nada pro papai e pra mamãe, por favor. “Vou pensar”, disse ela tão preocupada quanto a gente, “mas vão já tomar um banho quente e se secar”. Ao termo do jantar mais tenso de nossas então jovens vidas, percebêramos pelo humor dos progenitores que não fôramos delatados. Agradecemos no dia seguinte, e ela deu o preço: “dessa vez fica assim, mas se vocês fizerem de novo eu conto tudo!”

Sem dúvida, Preta preferia ficar em seu quarto pintando as unhas dos pés, ou apostando mais da metade do salário em quantas loterias fossem legalizadas, ou fazendo dindim pra vender pra molecada da quadra. Acho que gostou quando notou que tínhamos crescido e agora éramos adolescentes. Nós, por outro lado, começamos a notar uma série de particularidades antes insuspeitas. Quando descobrimos o sexo e tout ce qui va avec, percebemos que, a não ser por eventuais tranças nos cabelos revoltos e o esmalte nas unhas dos pés, Preta era absolutamente assexuada. Quando questionamos o sistema, nos demos conta de que tínhamos em nossa própria casa uma evangélica de estereótipo, do tipo que doa mais que o dízimo e não vai à banca sem falar com o pastor. Como tudo o mais que significava vestígio da infância, nos afastamos dela.

Foi quando nos surpreendemos brutalmente. Nossa mãe se mudou para os Estados Unidos, e consciente da inadaptabilidade técnica de Preta em um mundo que vê currículo mas não vê coração, a convidou para ir junto.

Àquela época, ela já tinha uma reputação, entre nossos amigos, de falar um idioma semelhante ao português, mas ininteligível para não iniciados. Nos perguntávamos como faria para se virar em inglês – na verdade, apostávamos em quanto tempo ela estaria de volta. Mas ela não se rendeu. Nos admirávamos das histórias que chegavam pelo telefone.

A primeira vez que a Preta se aventurou sozinha em solo gringo foi para ir à loteria. Levou consigo o número de telefone de casa anotado em uma tira de papel e, sem dizer palavra, o entregou ao caixa. Mamãe atendeu surpresa e, compreendendo a situação, explicou ao homem do que se tratava. Por sorte, ele era mexicano, evangélico, e foi assim que Preta estabeleceu um círculo de relações americanas antes de qualquer outro na família. E, de quebra, aprendeu a falar espanhol.

Ao fim da temporada americana, nós já tínhamos crescido. Preta voltou à rotina brasiliense e às nossas vidas. Agora, o carinho que tinha por nós se imiscuía de uma admiração velada pelos adultos que nos tornávamos. “Acumulou de novo, hein, Preta!”, eu dizia ao café da manhã, e ela trazia as dezenas sorteadas pela Mega-Sena anotadas num canto de jornal qualquer. “O Dagoberto passou por aí?”, perguntava ela, referindo-se ao “fantasma” que usava dúzias de copos e os espalhava pela casa, sem jamais fazer o favor de os levar de volta à cozinha.

No início do ano, Preta teve uma convulsão. Mamãe viajava, e Guigo, Paula e eu, assustados, chamamos uma ambulância. Ao longo da noite, ela teve outras quatro crises. Fiquei até as 2h da madrugada no hospital, e voltei pra casa quando soube que ela seria internada. No dia seguinte voltei à ala de emergência, e a notícia que recebi era ambígua: ela se recuperava, mas não havia diagnóstico.

Preta se submeteu a séries de exames nos meses seguintes. Fez duas tomografias, várias radiografias, urina, sangue, fezes, tudo. Como ainda não havia diagnóstico, levantou-se a hipótese de que ela fosse epilética. Há um mês e meio, ela teve outra crise aguda de dor de cabeça, acompanhada desta vez de tontura e ânsia de vômito. Voltou ao hospital. Naquela semana, eu estava inteiramente absorvido pelo trabalho, e só soube no dia seguinte. Fui procurá-la e a encontrei sobre um colchão, no corredor do HRAN, com uma agulha no braço e a cabeça encoberta. Só pude reconhecê-la pelo esmalte descascado nas unhas dos pés. Ela se queixou de dor, não suportava a luz, e aguardava tratamento nos dias seguintes.

Quase um mês se passou até que ela fosse transferida do corredor para a ala de internados. “Aqui é melhor”, dizia ela quando a visitava, “pelo menos fica perto do banheiro”. A terceira tomografia revelou um tumor maior que uma laranja.

Ela foi transferida para o Hospital de Base e operada de urgência, disseram que se a pressão intracraniana não fosse aliviada ela teria morrido em dois dias. Mas que, ainda assim, não deveríamos ter esperança. Com químio e radioterapia, não deve sobreviver ao ano.

Fui visitá-la ontem e a encontrei com metade da cabeça raspada, metade do corpo paralisado, um olhar perdido. Perguntei se me reconhecia, ela disse meu nome. Ainda no HRAN, me apresentara como “filho de consideração” à acompanhante de outra paciente. Dessa vez, olhou vagamente na minha direção e disse “toma cuidado, ta?” Balbuciou alguns sons ininteligíveis e pareceu oscilar entre o sono e a vigília. A enfermeira passou dizendo que o horário de visitas terminara. Eu disse a Preta que ficasse tranqüila, sempre. Tranqüila. Saí do hospital com a sensação de que nunca mais a verei. E eu nem consegui cantar Preta, Preta, Pretinha de novo, nem dizer, droga, “eu te amo e brigado por tudo”.

Wednesday, August 15, 2007

Me deseas?

- Me deseas?


- Si. Mucho.


Buenos Aires, 1h47. Plaza San Martín, esquina da calle Florida, só os táxis navegam pelo asfalto negro, irrompendo pelos reflexos nas poças d´água e pelas salvas de sons dos bares próximos.

- Me deseas?

- Si. Mucho. Pero no tiengo plata.

- Entonces?

- Entonces me voy, buenas noches.

- Ni 100 pesos?

- No.

- Ni 50?

- Ahn ahn.

- Entonces que haces aca?

- No hablo español.

- Português?

- Pode ser...

- O que você ta fazendo aqui, se não quer uns carinhos?

- Tô esperando parar de chover.

- Não tá chovendo.

- Você fala português muito bem.

- Sou chilena.

- Ah.

- Não tá chovendo.

- Não tinha percebido.

- Você não devia ficar parado, aí...

- Não tinha nada melhor pra fazer. Vou indo.

- Espera. Quer um cigarro?

- Quero. Gracias. Por que você faz isso?

- Isso de vender meus carinhos?

- É.

- Porque posso. Sou jovem e tem gente querendo pagar pelos meus carinhos.

- Pára de chamar isso de “meus carinhos”...

- Sou chilena.

- Entonces?

- Vale. Pero esto es lo que yo...

- Você é bonita. Não acha que está desperdiçando juventude, assim?

- Claro que não, jajaja! A juventude não é um valor, só um momento na vida. Não dá pra desperdiçar juventude, só dá pra viver ou não viver.

- Pode ser...

- Te lo juro!

- Yo te creo!

- Acabou o seu cigarro.

- É, brigado. Meu hotel é bem ali, vou indo.

- Espera! Não vai agora, tá chovendo...

Wednesday, August 8, 2007

Tempête mental

Ouvi dizer que um nerd calculou quanta energia seria economizada no mundo se o Google funcionasse com a tela preta. Já calcularam a velocidade necessária para colocar uma caneta em distância orbital a partir de um ponto qualquer na linha do equador. Enquanto isso, David Beckham tem curtido as festinhas de seus melhores amigos – Tom Cruise e Will Smith – e há meses que Gisele Bündschen, muito velha para modelar, só comenta os oito quilos a mais que vem apresentando desde que largou o ganha pão. Nem perguntam mais sobre o episódio das peles dos guachinins. Dodô foi absolvido de ter tomado pancas antes do jogo do Botafogo (aparentemente os inibidores de apetite não melhoram a performance); e, por falar em jogo, os alemães estão instalando videogames nos banheiros públicos. Se estudar é ser capaz de triar informações relevantes, já começo em desvantagem.

Dia 1

Logo no primeiro dia cometi um erro imperdoável: cheguei 7 minutos atrasado. Atraí todos os olhares e destruí a tensa aura de conhecimento em que estavam imersos, como se estilhaçasse o aquário precário em que se enfileiravam, aos pares, esbugalhados peixinhos redondos. Os mais próximos da porta chispavam como se soletrassem a acusação: “isso é descaso!” E o descaso é intolerável, diziam-me os semblantes inquisidores por que passei primeiro, à procura de um lugar vago na sala de aula quase lotada. É desperdiçar o tempo em que se poderia aprender todo o conteúdo da questão mais difícil da prova; é negligenciar a densidade dos macetes que o professor pago em barris de petróleo consegue socar em poucos minutos. É rasgar o dinheiro que você, em tese, investiu para recuperar depois, com o primeiro salário depositado em conta pelo governo.

Venci as carteiras mais ao fundo e senti o ar escassear à medida que me aproximava do quadro negro. Ainda não sabia disso, mas penetrava num dos espaços sociais mais carregados do mundo contemporâneo. O clima na Primeira Fileira dos cursinhos para concursos públicos é comparável apenas ao das reuniões de cúpula da Al Qaeda, dos míticos torneios de pôquer entre líderes de facção da máfia russa e do banheiro feminino do Desfrut Bar. Naquela área, meu atraso não era interpretado apenas como descaso e sintoma de um caráter degenerado – era sabotagem. Eu, concorrente tinhoso, teria deliberadamente interrompido uma explicação, desviado as atenções, rasgado o dinheiro que aquelas pessoas investiram para recuperar depois, com o primeiro salário mamado na ainda distante teta pública.

Toda a hostilidade não destruiu, naquele primeiro dia, minha excitação juvenil, aquela ansiedade de primeiro dia de aula depois das férias. Faria novos melhores amigos? Conheceria algum sujeito hilário, cujos aforismos e tiradas se tornariam legendários para meus amigos da iniciativa privada? Descobriria finalmente a linda jovem ninfomaníaca dotada de cérebro e sensibilidade por que vinha procurando todos aqueles anos? Olhei em volta, ávido por um sinal de reconhecimento que fosse, logo que pude me sentar. Só então percebi o silêncio. O professor, maestro daquela orquestra macabra, tinha esperado meu périplo para reiniciar a aula. Alguém tossiu. No código não-escrito dos cursinhos, a tosse é a última advertência antes do ostracismo. Espero aprender a dançar antes que me pisem no pé.