Tuesday, December 11, 2007

Cassandra podia ser uma ninfeta cretina, mas tinha razão

Cassandra tinha tudo. Era princesa de Tróia – a inconquistável, insitiável, indestrutível cidade mais poderosa do mundo – filha do glorioso Príamo, irmã do heróico Heitor e do belo Páris. Tão inacreditavelmente bela que até Apolo, deus pop e de notório sex-appeal, apaixonou-se por ela.

Adolescente frívola, Cassandra saltitava matreira pelos campos idílicos, inebriada pelo orvalho matinal e pela birita da noite anterior que ainda circulava no sangue, quando lhe apareceu o divino pretendente. Apolo fez a corte: deve ter dançado, declamado, trocado a lâmpada do Sol e realizado outras proezas igualmente inócuas de modo que, frustrado, resolveu apelar. Ofereceu à ninfeta o dom da profecia em troca de seu amor. Cassandra aceitou.

Inspirada pela malícia feminina que já naquele tempo era intrínseca em gregas e troianas, Cassandra, depois de receber a dádiva e tornar-se profetiza, não cumpriu sua parte no trato. “Mas Apolo, eu te dei meu amor… Só que amor de amigo, entende?”, ela deve ter tentado argumentar. O deus – que não era otário nem cristão, para aceitar essa caridade emocional tão popular entre as descendentes de Cassandra no século XXI – indignou-se e concebeu um castigo à altura de sua ira. A inconseqüente manteria o dom de ver o futuro, mas ninguém acreditaria nela, jamais. E que deixasse de ser escrota e aprendesse a não fazer joguinhos com os deuses, porra.

Cassandra passou a ver os cadáveres de seus compatriotas empilharem-se em seus sonhos, e a sentir na própria “câmara de vênus” o calor das labaredas que logo consumiriam sua amada cidade. Tentou alertar as autoridades, que sutilmente lhe sugeriram que largasse a papoula, o hidromel, ou o que quer que fosse que a deixasse naquela lombra. Nem as pessoas próximas nem as distantes, nem os cultos nem os crédulos, ninguém acreditou no que a jovem previa: a queda próxima da inviolável Tróia.

Nem quando eclodiu a guerra recebeu Cassandra – agora apechada de doida – o devido mérito. Tampouco deram-lhe ouvidos quando implorou que destruíssem aquele enorme cavalo de madeira deixado de presente na porta da cidade pelos inimigos derrotados. “Há inúmeros guerreiros gregos dentro dele!”, teria gritado histericamente a princesa, para alegria dos fofoqueiros palacianos, que devem ter feito todo o tipo de inferências e sacanagens a respeito das necessidades fisiológicas e alucinações libidinosas da menina.

Mas havia guerreiros dentro do cavalo; Tróia caiu, Cassandra terminou estuprada e levada como concumbina para Agamêmnon. De volta da guerra, foram ambos mortos por Clitemnestra, esposa ciumenta do líder grego.

Mas o grande lance da história não é a atualidade do comportamento acintosamente feminino de Cassandra nem a vingança de Apolo (da qual teriam gostado de usufruir tantos machos contemporâneos colocados em situação análoga de coito frustrado). O mito de Cassandra vale por escancarar a alienação das pessoas diante das forças que provocam sua ruína. Troianos ou não, tendemos sempre a negar os mais óbvios sinais de “merda à vista”. O mito serve também serve para ilustrar a angústia sentida pelos que percebem a tragédia; mas, desacreditados, são impotentes para a evitar (condição confundida com o pessimismo e chamada de “síndrome de Cassandra”). O dilema é clássico: se os videntes agourentos forem ouvidos, perdem a credibilidade, pois os males que prevêem são evitados e suas profecias não se realizam. Se os ignoramos, as calamidades se confirmam – mas então era melhor que nem tivessem falado nada.

Há algum tempo venho escutando atentamente a Cassandrinha dentro de mim. O problema é que, nos últimos tempos, ela não cala a boca.

1 comment:

Anonymous said...

Vou matar essa Cassandra!