Thursday, March 27, 2008

Réquiem para minhas conquistas precoces

O nó do enforcado é aquele que se torna mais e mais apertado na medida em que se luta contra ele. O tempo é o nó do enforcado de todos os sonhos.

Lembro-me de um sonho que tive enquanto atravessava um pedaço de cerrado, entre minha escola e o prédio onde morava, debaixo do sol seco da hora do almoço de setembro em Brasília. Sonhava que aquele momento arfante entre grilos e cupins não entraria na minha biografia, ou no filme que fariam sobre minha vida quando eu fosse famoso, ou depois que morresse. Talvez merecesse um registro poetizado, como momento-síntese da minha juventude sonhadora na capital do meu país. Sonhava com as palavras que descreveriam o prelúdio do meu sucesso, com a trilha sonora que se ouviria contra a imagem do meu rosto suado e enigmaticamente sorridente que se metamorfosearia em um sorriso realizado num rosto mais velho.

Os elogios, ou ausência deles, esculpiam a imagem que fazia de mim mesmo, direcionavam minhas ambições e ao mesmo tempo me escravizavam. Ainda que começasse a perceber essa poderosa influência, não a recusava, à época em que todos meus heróis eram seres arrogantes. Considerava a vaidade desmedida um efeito colateral pitoresco, quase charmoso, da doce mistura de juventude com genialidade. Mirava em Buddy Holly, morto aos 22 anos; Jim Morrison e Kurt Cobain, aos 27; Alexandre, o grande, aos 33 e depois de conquistar o mundo conhecido; Napoleão, general consagrado aos 24; Álvares de Azevedo, vencido pela tuberculose aos 21, depois de tantas Noites na Taverna; ou Castro Alves, 24; nos Beatles, que mudaram a história da música entre os 22 e os 30; ou Rimbaud, que reinventou a poesia entre os 15 e 18 anos de idade. Na lógica interna do meu orgulho, a precocidade era não apenas o signo inexorável dos gênios, mas algo que viria naturalmente com o tempo.

De repente, o tempo passou e meu momento glorioso naquele ermo meio-dia ganhou contornos ridículos, e, em vez de adornar um mausoléu com estátua eqüestre, parece fadado à vala comum da mediocridade de uma megalomania juvenil.

Isso soa mais deprimente do que é, de fato. Acontece simplesmente que os aforismos com que tive contato ao longo do caminho começam a ganhar nitidez. Para J. D. Salinger, o homem imaturo é aquele que quer morrer gloriosamente por uma causa, enquanto o homem maduro contenta-se em viver humildemente por ela. Conforme Machado de Assis, o mundo era pequeno para Alexandre; mas um desvão de telhado é infinito para as andorinhas. Entre vitórias pontuais e derrotas dolorosas, continuaram salvando-se as máximas: não disseram por aí que os fracassos são os degraus para o sucesso? Enquanto me canso nessa escadaria infinita, talvez deva fazer mais para sobrepujá-la que constatar que a diferença entre humildade e umidade não são só o h e o l.

O tempo leva consigo os sonhos, mas deixa em troca uma imagem muito mais perfeita de quem realmente somos. Ao deparar com a inocuidade de toda essa soberba, comecei a suspeitar que aprender a humildade era preciso. Agora percebo que, na verdade, talvez seja preciso conquistá-la – lenta, doce e dolorosamente.

***

(Do episódio clássico d’Os Simpsons em que Homer Simpson e Ned Flanders conversam sobre a maturidade):

Flanders: É admirável! Como você faz para calar aquela pequena voz que diz: “pense”?

Homer: Você quer dizer, a Lisa?

Flanders: Não, o bom-senso!

Homer: Ah, aquilo. Para isso, nosso pequeno amigo álcool aqui pode dar uma mão...

Friday, March 14, 2008

De flores e genes

Sejamos explícitos: oficializar um namoro nada mais é que estabelecer um contrato recíproco de monopólio sobre o acesso físico. Pode ser firmado entre duas pessoas ou mais: nada impede, tecnicamente, que três, quatro ou cinco indivíduos decidam namorar-se (caso em que se configura um oligopólio ou cartel), até o limite razoável de seis – a partir daí é suruba pura e simples, com todas as características de mercado concorrencial.

Ainda que ingenuamente acreditemos na poesia do amor e na música dos beijos, entre o flerte e a conquista nada mais fazemos que executar mecanicamente uma série de manobras econômicas – e mesmo depois de estabelecido o monopólio, continuamos submetidos a determinadas leis. Todos já conhecemos garotas inflacionadas, no mercado da farra, pelo excesso de demanda. Todos já passamos noites de carnaval na cidade deserta, disputando a tapas pessoas desproporcionalmente valorizadas pelo choque de oferta causado pela debandada rumo aos grandes centros de sacanagem. Como nas bolsas de valores, rumores e especulações de todos os tipos podem fazer nossa cotação oscilar entre súbitas altas e quedas acachapantes. Tenho diversos conhecidos que já declararam os respectivos estados de moratória moral. Nada que a idade não resolva.

Apreciamos belas histórias pontuadas de foram felizes para sempre, mas não é preciso nenhuma acrobacia historiográfica para compreender que a instituição da união estável foi criada há milênios, quando por razões práticas as pessoas precisavam dar um jeito de saber quem era filho de quem. A lógica seguia seu trilho: eu, se fosse o chefe da tribo, não gostaria de deixar o comando para o filho arrogante do meu arqui-rival. Tampouco poderia correr o risco de fazê-lo por falta de informação. Desta forma, precisava, casando-me com minhas concubinas, assegurar que tudo de humano que saísse do ventre delas seria doravante obra minha.

Ainda assim, apesar da óbvia praticidade a motivar as razões e da fria clareza das cláusulas no contrato, despontam em diversos pontos ao longo do caminho excentricidades como o ciúme furioso, o fervoroso sentimento de posse, o desligamento sexual, o confronto entre o cálido início e a monotonia recente, os longos silêncios e as longas discussões surreais, a repentina percepção da falta de interesses em comum, o aterrador atilamento de que não se consegue mais viver sem outro. E a brutal consciência de que cada ato na vida de todas as pessoas é uma ária nessa ópera de ventríloquos, em busca desse tipo de monopólio, que nos livre de nossa solidão sistêmica – que continua lá embaixo, em algum lugar, achando graça de tudo isso.

Provavelmente pensando que tudo teria sido diferente se, junto com o Fogo, Prometeus tivesse trazido do Olimpo o Teste de DNA.