Wednesday, September 19, 2007

Giffen na acrópole (ou Epicuro nos verdes campos da Irlanda)

Em nossa alegre sociedade capitalista, a noite é dedicada – se o cansaço permite – a fazer o balanço do dia. É também quando quase escorregamos da rotina com pensamentos melancólicos ou provocamos a insônia com idéias impossíveis. Ao menos pra mim era assim. Até que uma aula de economia se enfiou entre as 19h e as 23h e deturpou o sistema.

A praga assolou os verdes campos da Irlanda, entre 1845 e 1849. Famintos, doentes e empobrecidos, os celtas viam suas plantações se perderem e viravam-se como podiam. A moléstia não poupou nem a batata, principal responsável por manter ressoando a gaita de fole nos vales, e de pé o seu tocador. Como previsível, a escassez levou a um aumento no preço do tubérculo – o que, por sua vez, deveria conduzir a uma redução na demanda, conforme reza o corolário econômico. Mas o que aconteceu na Irlanda no meio do século XIX foi o contrário: quanto mais aumentava o preço da batata, mais crescia a procura por ela na mercearia do Finnerty.

Mais tarde, um inglês chamado Giffen explicou o fenômeno. Com seu novo preço, a batata começou a custar uma maior fração do rendimento das famílias irlandesas, que passaram a não poder pagar pela já pouca carne que comiam antes. Sem comprar os sirloins, os irlandeses se viam com um pouco mais de prata para gastar em comida decidiram empregar essa diferença em batatas – o alimento mais calórico e, bloddy hell, ainda o mais barato. Por isso, quanto mais cara a batata, mais procurada ela era. E aos itens que, como o descrito, subvertem o princípio elementar da demanda e oferta na configuração de preços, dá-se hoje o nome de “bens de Giffen”.

Aula de economia. Ouvir sobre bens de Giffen depois das 21h. Pensar em sexo é a alternativa natural. Misturar sexo com Giffen, a loucura iminente e a vontade de não estar ali. Vontade de comer, ou comer, ou viajar, ou viajar, ou qualquer coisa que deixasse bem. O “eu” se comporta como um bem de Giffen. Quanto mais você cede ao “eu”, mais voraz ele fica, mais ele quer. O hedonismo por si só, a busca do prazer como estilo de vida, produz imensos vazios de fome no fundo do “eu”, por mais que a proposta da busca do gozo seja justamente alimentá-lo. Deturpemos, então, Epicuro: sua idéia era que para ser feliz o homem necessitava de Liberdade, Amizade e Tempo para Meditar.

Epicuro lançava o prazer como sentido da vida, mas certamente não conhecia Giffen. Se conhecesse, talvez admitisse que a busca incessante por prazer conduz ao aumento de tolerância a ele – todas doses devem ser cada vez maiores – e finalmente provoca o colapso. Talvez o grego olhasse, então, pelo outro lado e invertesse a proposição: o sentido de tudo não é ter sempre prazer, mas evitar a dor. E, para evitar a dor de barriga causada pela fome pantagruélica do “eu”, só existe um jeito: não precisar de nada. Querer docemente, de forma tranqüila, ainda vai. Mas precisar é escutar a uma fome que não vai passar e escancarar a porta a uma dor que não hesitará em entrar.

Então, que a “Liberdade” de Epicuro seja interpretada assim: Liberdade, inclusive, da necessidade. Mas essa proposta, no limite, deixa o famélico “eu” apagado, translúcido, sem paixão e sem graça. O “eu” quer estímulos para não se diluir num mar de “eus” grande demais e enlouquecer. E, se nunca vai matar a própria fome concentrando-se em si mesmo, deve descobrir os “vocês” e “eles”, aos quais se dedicará inteiramente. Sem precisar. Mas querendo intensamente, desejando loucamente, e não sentindo outra dor que a da perda, e ainda essa transfigurada em melancolia por vir acompanhada de tantas memórias boas de não-arrependimento.

Giffen, Epicuro, aula de economia às 22h e toda a bagagem de um dia me levam à formulação pouco original, mas apaziguadora, de que o “eu” deve buscar as verdades e os prazeres fora de si mesmo.

Sendo a única concessão irrevogável, veja bem, a punheta.

3 comments:

Rayssa Tomaz. said...
This comment has been removed by the author.
Rayssa Tomaz. said...

Assim que comecei a ler juro que estava curiosa sobre qual seria o propósito de toda essa explicação econômica. A brilhante conclusão acaba por ser falha em alguns casos, principalmente quando sabemos que uma 'punheta' não resolve o problema de todo mundo, né?
Biologicamente falando, é impossível que ela resolva o problema de quem não tem alguns utensílios essenciais para o seu eficaz desenvolvimento (em especial os MEUS problemas! rs).

Mas então, gosto das questões acerca das vontades e satisfações do homem (apesar de detestar discussões econômicas). Fiz um trabalho essa semana sobre Zygmunt Baumam, conhece? No livro 'O amor líquido' ele passeia pelo campos floridos e tortuosos dos relacionamentos. Caminha lentamente por todas as suas ordens, classes, gêneros e famílias... E em definitivo o desejo é o que mais me agrada. Vale ressaltar que é a única forma que busca ser verdadeira, que é pitorescamente instintiva, suicída e objetivamente direta de se obter alguma alguma coisa.

'O desejo já nasce contaminado com a vontade de morrer.'

Adorei isso aqui, vou virar freguesa.

Até mais colega de profissão.

ah odeio comentar em blogs, principalmente porque eles sempre dão problemas.

Rayssa Tomaz. said...

Então quer dizer que vamos trocar essas coisas da vida pelo blog? Ok, me parece uma boa maneira, ou pelo menos a mais adequada, de socializar no momento. né?

Sobre o Zigue (adorei o apelido!) eu só posso dizer que eu também não o teria conhecido se não fosse por algum trabalho da faculdade. Vale a pena ler, eu garanto que é bastante inspirador.

Em resposta ao seu comentário sobre ver as coisas perdidas como investimento, indico mais uma vez Zygmunt, que lá no mesmo livro fala exatamente isso... mas sei lá, não sou boa com ações, valores e transações econômicas. Já foi difícil entender sobre as suas batatas! Prefiro ficar na eterna doação sem retorno!

Lembrei de um outro bom livro, cheio de constatações interessantes sobre relacionamentos. O meu favorito! Werther do Goethe.

"Não ser compreendido é o destino de certos homens."

Fica essa de presente para você.
Beijo