Friday, February 15, 2008

Inércia

Vencer a inércia - seja ela moral, intelectual ou, por que não?, física - é o maior e menos reconhecido desafio humano. Quando disse Martin Luther King não se admirar da maldade dos maus nem da violência dos violentos, mas da imobilidade dos justos, era a isso que se referia. Já encarei minha própria letargia nos olhos e não me esqueço. Era verão no hemisfério norte. O calor parado e as abelhas se batendo nas janelas da cozinha. Dentro da geladeira, uma única lata de milho estragado e um pote com uma pasta marrom que ninguém reconhecia nem admitia ter largado ali. E, de qualquer forma, ninguém tinha ânimo pra jogar qualquer dos dois no lixo. Noites sudorentas, insones, o piso estalando e se vergando sob o calor suspirante. Era “a grande depressão” em Strasbourg. Nada a ver com sentimentos. Pelo menos não diretamente.

O verão é baixa temporada na cidade, os termos de trabalho temporário, que normalmente vão de setembro a maio, se acabam – nem todo mundo consegue se recontratar. As aulas também chegam ao fim. Ninguém tinha dinheiro para abastecer a casa, ninguém sabia o que aconteceria quando acabasse o último tubo de desodorante que todos dividíamos. Vivíamos a ressaca de um inverno exuberante e uma primavera cheia de viagens.

Levantei cedo e imprimi o currículo que tinha preparado no dia anterior. Uma página, com foto: como os franceses gostam. Localizei os lugares que se preparavam para a copa – entrei em cada salão com anúncio de telão gigante, happy hour à coup du monde ou promoção que o valesse. Quem aposta em atrair clientela deve precisar de mão-de-obra, pensei. Quanto mais brasileira. Quanto mais barata e disposta a ficar por um só mês. Depois, fui aos lugares que se clamam brasileiros. Mi barrio, mi gente. Depois, tentei os lugares que freqüentava.

Sete horas mais tarde, 15 cópias do CV a menos e um punhado de désolés na mochila, sentei-me à beira do rio pra conversar com meu kebab. Minha mãe me disse que nossa geração é conhecida como aquela em que os jovens não querem saber de nada. É um fenômeno sociológico mundial, selon mamma: nós, frutos dos anos 80, não temos a menor pressa pra conseguir trabalho, pra construir carreira, pra fazer família. Somos o contrário dos yuppies e já nos deram até um nome: down-shifters.

Em defesa da geração, poderia ser dito que não é apatia: é esmero. Poder-se-ia alegar que fazemos devagar para fazer bem-feito. Mas não é verdade. Simplesmente fazemos devagar, mesmo, por que fazemos sem convicção alguma.

Eu, no meu caso, sou um mimado, sortudo de não precisar me apressar na vida – e me sinto tão culpado por isso que evito pensar na minha própria condição e nego a mim mesmo minha bonança. Me identifico terrivelmente com uma certa burguesia pseudo-intelectual que nunca trabalhou na vida e se diz de esquerda; que nunca viu pobreza, mas se investe de ideais para justificar o coisa alguma. Às vezes penso comigo mesmo que queria ser artista, às vezes acho que a arte já morreu faz tempo e os artistas contemporâneos só servem para fazer o mundo de espectadores vomitar sobre o túmulo dela. E eu estou pronto para me juntar a eles, brincando serelepe de gastar recursos que em sua maioria não são meus, que eu não mereci e que poderiam ser tão melhor empregues – e voilà!, não consigo sequer escrever a palavra “dinheiro”.

E não tenho sequer a certeza de que resisti à tentação de glamourizar esse exame de consciência.

1 comment:

Angélica Seguí said...

agora eu tb!
nham nham nham
driblei a inércia