Monday, June 2, 2008

Pense bem antes de acertar

Ibrahimovic recebeu um passe complicado; dividiu corajosamente com um zagueiro neandertal e manteve a posse de bola; cortou para dentro da área e deixou um marcador no chão; com uma ginga atribuída exclusivamente a brasileiros e argentinos, deixou no chão o segundo; mudou bruscamente de direção para derrubar o terceiro e ainda deu uma paradinha, antes de tocar para o gol, com muita categoria. Um lance genial, mas inteligível. Em vez dos malabarismos antigravitacionais que vemos por aí, uma sequência lógica de movimentos perfeitamente executados.

Quando jogava pela seleção da Octogonal 2, vivi um momento parecido. Dividi com o beque e ganhei; entrei na área e, driblando, passei por dois; mas, quando armei o chute, senti a bola se distanciando. Tentei ajustar o pé de apoio, e na minha versão da jogada do Ibrahimovic, quem terminou no chão fui eu. Resguardadas minhas limitações físicas e técnicas, esse detalhe faz a diferença entre eu e o atleta sueco: hoje, eu pago cinco reais por hora pelo aluguel da quadra lá no Arena, ele ganha milhões de euros pra jogar nos maiores estádios do mundo. Nascemos no mesmo ano, e, em algum lugar ao longo de nossas trajetórias, a capacidade de manter o pé de apoio firme determinou que um de nós fosse rico e jogasse no Ajax da Holanda – terra da tulipa, da maconha e das mulheres com mais de 1,80 metro – e o outro fosse gordo e míope. Ele tem centenas de gols obsessivamente analisados por fãs ávidos no YouTube, enquanto ninguém jamais se lembrará dos meus lances nos gramados – à exceção daquele frango na final da Semana Cultural da 8ª série, mas esse não conta porque a bunda gorda do Igor encobria parcialmente minha visão.

Forçando a mão no paralelismo entre minha história e aquela de Zlatan Ibrahimovic, poder-se-ia estabelecer também a diferença entre o medíocre e o excelente. Entre o talento não-realizado e o desenvolvido, estimulado e florescente. Não duvido de que, como eu, ele também já tenha vivido derrotas. Quiçá até já caiu no chão, tentando materializar a jogada sonhada. Mas, na maior parte das vezes, consegue realizar com as pernas aquilo que acontece em sua cabeça. Eu não consigo realizar de jeito nenhum o que se passa na minha.

Ibrahimovic está no auge, eu ainda nem comecei minha escalada profissional. Em cinco anos, dez, no máximo, o sueco deve se aposentar, e terá todo o tempo livre para cultivar suas paixões e dedicar-se ao aprimoramento pessoal. No mesmo prazo, espero estar trabalhando ainda com frescor idealista, embora já escorado em alguma experiência, sem tempo nenhum para veleidades. Ele, então, continuará acumulando capital quase na proporção do PIB de um pequeno país por meio de contratos publicitários, eu comprarei meu primeiro apartamento com prestações a serem pagas em 35 anos.

É claro que ele sentirá o baque quando perceber que a fama é uma amante ingrata, que deixa os homens tão subitamente quanto os seduz. Deixará de ser reconhecido à porta dos restaurantes que freqüenta, notará que a faixa etária dos poucos que ainda lhe pedem autógrafos é cada vez mais alta. Nessa altura, estarei assumindo minhas primeiras posições de chefia. Mais pragmático, manterei meus ideais inscritos em frases de motivação distribuídas periodicamente a meus comandados, mas intimamente saberei que muito já será se fizer o melhor que posso.

Ibrahimovic, ao aproximar-se da meia-idade, ganhará uma placa no Estádio Olímpico de Estocolmo. O fato deve ganhar no máximo uma breve referência nos jornais. O brilho do passado refulgirá brevemente sobre o presente, mas não tardará a desvanecer: e o ex-atleta encontrará refúgio no tripé alcoól-drogas-prostitutas. Será preso duas vezes, uma delas por tentar beijar Paris Hilton – também já decadente – à força. Virá ao Brasil passar férias e dar uma entrevista insossa ao sucessor do Jô Soares - ou ao próprio, caso se confirme sua propensão ao não-envelhecimento. Protagonizará uma cena ridícula, dançando samba com a Sasha.

Por volta dos 50 anos, estarei no auge da carreira e da produção intelectual. Publicarei um livro medíocre; pois, como nunca pude dedicar-me exclusivamente à literatura, jamais cheguei a refinar minha técnica. Ainda assim, ele venderá bem entre meus funcionários, puxa-sacos e familiares, e me renderá uma aura de erudição, que tratarei de matizar com uma humildade estudada. Trabalharei menos, ganharei mais, poderei ver meus filhos crescerem. Nenhum deles saberá quem foi Zlatan Ibrahimovic, e eu poderei finalmente fazer a tão sonhada viagem à Holanda do Ajax.

Ainda bem que, naquela manhã fatídica de 1991, perdi o pé de apoio, fui ao chão e não concluí minha boa jogada. Ainda bem que nunca cheguei a realizar meu talento. Coitado do Ibrahimovic.

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