Tuesday, September 23, 2008

Retalhos

O crepúsculo se demora sobre o deserto
O vendaval espera o momento
Então preciso costurar
Para cobrir o deserto
Acender as lâmpadas
Que desfaçam o lusco-fusco
Que resistam ao vendaval.

A menina vestida de rendas
Tocava piano no caos.
Uma noite abriu as asas
Cansada de tanto som,
Equilibrou-se no azul,
De tonta não mais olhou
Para mim, (mas para alguém?)
Caiu no álbum de retratos.

Mas não foi sempre assim.
No início era o sol.

E sua sedução era menos
de mulher do que de casa;
pois vinha de como era por dentro
e por detrás da fachada.

Mesmo quando ela possui
A mesma plácida elegância,
O mesmo reboco claro,
Riso franco de varandas,

uma casa não é nunca
só para ser contemplada;
melhor: somente por dentro
é possível contemplá-la.

Seduz pelo que é dentro,
ou será, quando se abra;
pelo que pode ser dentro
de suas paredes fechadas;

pelo que dentro fizeram
com seus vazios, com o nada;
pelos espaços de dentro,
não pelo que dentro guarda;

pelos espaços de dentro:
seus recintos, suas áreas,
organizando-se dentro
em corredores e salas,

os quais sugerindo ao homem
estâncias aconchegadas,
paredes bem revestidas
ou recessos bons de cavas,

exercem sobre esse homem
efeito igual ao que ela me causava:
a vontade de corrê-la
por dentro, de visitá-la.

Mas hoje só há distância.
E hoje amealho autoperguntas.

Por que amou por que amou
se sabia
p r o i b i d o p a s s e a r s e n t i m e n t o s
ternos ou desesperados
nesse museu do pardo indiferente
me diga : mas por que
amar sofrer talvez como se morre
de varíola voluntária vágula evidente?

ah PORQUEAMOU
e se queimou
todo por dentro por fora nos cantos ecos
lúgubres de mim mesmo
irm (ã,o) retrato espetáculo por que amou?

se era para
ou era por
como se entretanto todavia
toda via mas toda vida
é indagação do achado e aguda espotejação
da carne do conhecimento, ora veja

(E me ofereço autorespostas:)

permita cavalheir (o,a)
amig (o,a) me releve
este malestar
cantarino escarninho piedoso
este querer consolar sem muita convicção
o que é inconsolável de ofício
a morte é esconsolável consolatrix consoadíssima
a vida também
tudo também
mas o amor car (o,a) colega este não consola nunca de núncaras

E resta o silêncio do tentado.

De modo que quando o vendaval chegar
(Não sei se duro ou caroável),
talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
- Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.

Eu fiz o que podia que achei que você queria.

E se é para ser assim, um álbum de retratos,
Que eu tenha ao menos com que me cobrir:
Uns retalhos de MuriloMendesJoãoCabralCarlosDrummondManuelBandeira
E uns pedaços de mim mesmo
Antes que a noite chegue
Antes do vendaval.

(Poemas respeitosamente mutilados aqui, por uma causa maior que todos eles: “Pré-história”, ”A mulher e a casa”, “Amar-amaro” e “Consoada”).

1 comment:

Angélica Seguí said...
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